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Volney Berkenbrock
Teologia ecumênica - Capítulo 6 PDF Imprimir E-mail

 

 

Capítulo 6 – Ecumenismo a varejo: sugestões para práticas ecumênicas nas comunidades

 

Vimos até agora o Ecumenismo como fenômeno religioso, como movimento histórico à contramão das divisões, vimos a espiritualidade ecumênica, as propostas concretas de diversos grupos cristãos, cada qual com sua compreensão de Igreja, de ecumenismo, de unidade... Por fim vimos um problema específico no âmbito do ecumenismo que é a questão do pentecostalismo - e especialmente o que ocorre no Brasil. Nesta última parte vamos ver questões práticas de ecumenismo tanto no âmbito de comunidades como no da vivência do dia a dia do ecumenismo. Não se trata tanto aqui de refletir sobre o ecumenismo, nem de oferecer receitas ecumênicas, mas colocar algumas observações sobre um nível menos pretensioso, mais local e de pequeno passo. Este nível poderíamos chamar de ecumenismo a varejo, aquele que ocorre no pequeno, no âmbito familiar, cotidiano, onde fiel encontra fiel, onde o tema nem sempre é o ecumenismo, mas pode ser um componente.

Antes de iniciarmos este tema, faz-se necessária uma observação prévia: o "ecumenismo a varejo" não pertence necessariamente ao movimento ecumênico como tal, pois nem sempre se trata de situações onde a vontade ecumênica norteou as ações. Mas o "ecumenismo a varejo" não deixa de ter importância para o movimento ecumênico, sobretudo no sentido de ser um facilitador, um “quebra-gelo” para as posições institucionais, muitas vezes empedernidas por acontecimentos históricos, por preconceitos, por inseguranças de parte a parte. Como facilitador, o "ecumenismo a varejo" pode desencadear ações ecumênicas mais significativas. E, sobretudo neste aspecto repousa a maior importância deste modo de acontecer do ecumenismo. Ao mesmo tempo se deve dizer que ele não substitui nem deve ser paralelo ao ecumenismo como ação consciente e organizada.

 

6.1 Ocasiões ecumênicas

Vivemos em uma sociedade marcada pela pluralidade. Em todos os sentidos: pluralidade de cosmovisões, de busca e oferta de sentidos, de religiões e - o que interessa à nossa causa - de Igrejas cristãs. Nossa sociedade está repleta de Igrejas cristãs, das mais diferentes matizes e origens, com os mais diversos estilos de cultos, organizações e tradições. Esta realidade de pluralidade cristã está aos poucos sendo integrada em nossa sociedade brasileira como um fato consumado. Especialmente nas grandes cidades não mais causa estranheza o fato de conviverem diversas Igrejas cristãs num mesmo quarteirão, numa mesma rua ou inclusive como vizinhas. Especialmente nos bairros mais populares e de periferia é grande e forte a presença de diversos templos cristãos, convivendo lado a lado. O modelo colonial da cidade com a Igreja matriz (católica) na praça central e ponto de referência, não é mais necessariamente uma constante, apesar de ser ainda comum em muitos lugares. Aos poucos este estereótipo urbano cristão-católico está dando espaço a uma série de presenças de Igrejas cristãs. Também não mais estranha o fato de em muitas famílias haver pessoas que pertencem a diversas confissões cristãs. Esta presença de variadas confissões cristãs num espaço relativamente pequeno, faz com que os fiéis das diversas denominações não mais vivam somente entre si, mas convivam em muitos aspectos do cotidiano. Diversas ocasiões proporcionam uma convivência que pode ser proveitosa para ajudar o deslanchar de um movimento ecumênico. Citamos aqui algumas destas possibilidades:

a) O engajamento social comum. É muito comum que em diversos movimentos populares e sociais, cristãos de diversas denominações encontrem-se engajados lado a lado. Entre estes movimentos podemos citar associações de moradores, sindicatos, comissões de fábrica, associações diversas (de funcionários, escolares, ecológicas, etc.) e inclusive em partidos políticos. O que norteia este engajamento é geralmente uma causa comum a todos os engajados, como reivindicações de melhorias (caso típico das associações de moradores), apoio a uma obra de interesse comum, ou associações motivadas por algo que une as diversas pessoas (trabalho, lazer, estudo...). Este engajamento comum também pode ser notado por ocasiões de campanhas por alguma necessidade (exemplos típicos são as campanhas por ocasião de alguma catástrofe). Neste tipo de engajamento social comum não está em questão a pertença religiosa, mas geralmente ela não é um fator desconhecido. Principalmente em movimentos sociais (associações, sindicatos, partidos) as pessoas se conhecem suficientemente para saber da militância religiosa do outro, mesmo que não venham a discorrer abertamente sobre o assunto. Para o ecumenismo é relevante notar que esta prática de engajamento comum demonstra ser possível unir-se de tal forma que a diferença de credo seja – no movimento em questão – um assunto de importância secundária. A importância primária é dada àquilo que une e aproxima as pessoas e não àquilo que as divide e afasta. O "sentir comum", tão importante para o movimento ecumênico, bem como o sentimento de pertença comum são fatores presentes nestas ocasiões e podem ajudar a desencadear com mais facilidade um processo compreensão mútua no tocante à pertença e militância eclesial.

b) Comemorações cívicas: datas cívicas, posse de autoridades, inaugurações. O engajamento social comum e a convivência numa mesma sociedade de membros de diversas confissões cristãs trazem consequências diversas que exigem também a participação comum. São os casos de celebrações de datas cívicas, onde a programação é feita em comum, podendo ter ou não um ato religioso, mas sendo comum o convite a autoridades religiosas para se fazerem presentes. Mesmo não havendo um ato expressamente religioso, há o engajamento comum na preparação da programação para estas datas. O mesmo fato da presença de membros de diversas Igrejas ocorre por ocasião de posse de autoridades (de maior ou menor escalão, de presidente da república a presidente da associação de moradores, passando pela posse de prefeitos ou de dirigentes de entidades). Também em inaugurações de obras (públicas) é comum a participação de membros de diversas confissões, de modo que a antiga tradicional bênção do padre (sinal de um período da hegemonia católica) é cada vez menos comum e especialmente evitada em ocasiões de participação de pessoas de diversos credos. Também aqui o programa religioso – quando há – precisa ser preparado de tal modo a contemplar, de alguma forma todos os credos presentes, ou pelo menos não os contrariar. Isto já requer uma sensibilidade ecumênica mais acurada.

c) Celebrações da vida: aniversários, casamentos, bodas, formaturas. Cada vez mais estão se tornando comuns celebrações de etapas da vida com a presença de pessoas de diversos credos. Quando há na mesma família membros de diversas Igrejas, este encontro é comum em festas de famílias: aniversários, casamentos, natal, páscoa, ano novo. A realização de casamentos com membros de diversas Igrejas é às vezes a oportunidade para membros de uma Igreja entrar pela primeira vez no templo de outra Igreja. E como há no casamento uma cerimônia religiosa, é oportunidade para participar de uma celebração em outra Igreja. Não se pode chamar isto logo de ecumenismo, mas tem importância pelo fato de poder haver participação comum na oração, que é um dos pontos chaves no movimento ecumênico. Além disso, a presença de membros de diversas Igrejas em uma família (seja por casamento, seja por mudança de credo) aponta a um outro fator que não pode ser desprezado no âmbito ecumênico: a importância da amizade pessoal. Quando há amizade pessoal e profunda entre membros de diversas Igrejas, o outro não é mais um estranho, alguém com o qual não se quer ter contato; pelo contrário, o outro é mais próximo, há interesse pelas coisas do outro, há partilha de ideias, de alegrias e necessidades.

d) O espaço escolar. Um outro acontecimento na vida das pessoas que cada vez mais está sendo celebrado de forma ecumênica são as conclusões de cursos (formaturas). Na grande maioria das instituições de ensino estão presentes alunos de variadas Igrejas. As cerimônias de formaturas têm sido feitas muitas vezes com uma celebração ecumênica. E aqui já se trata de uma situação mais explícita de ecumenismo. Não apenas as formaturas, mas as próprias escolas são lugares que podem favorecer o "ecumenismo a varejo": o contato entre alunos de diversas confissões, a presença de professores de diversas confissões. A escola também pode ser um lugar de exercício consciente de ecumenismo. Sobretudo o ensino religioso escolar deve estar atento para a questão ecumênica. Nele há espaço para educação às coisas básicas do ecumenismo: respeito mútuo, compreensão, conhecimento do outro, visão positiva da diversidade, educação para a convivência fraterna. Há nesta disciplina (ensino religioso) inclusive espaço para se abordar direta e positivamente a diversidade eclesial e refletir a respeito deste fator na sociedade.

 

6.2 Passos na busca ecumênica das comunidades

Desde a declaração "Unitatis Redintegratio" (1965), a Igreja católica apostólica romana colocou-se oficialmente favorável ao movimento e à prática ecumênica. De lá para cá foram criados diversos organismos dentro da Igreja católica em nível mundial para promover o ecumenismo, coordenados pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Além disso, este Conselho em seu Diretório incentiva as dioceses a criarem mecanismos diocesanos que promovam o diálogo ecumênico. Apesar desta posição clara da hierarquia católica a favor do ecumenismo, o ecumenismo na base católica (nas comunidades) ainda é algo bastante desconhecido. E isto a meio século do Concílio Vaticano II! Esta é na prática uma das dificuldades para o ecumenismo. Por um lado ele é assumido oficialmente pela instituição Igreja católica, por outro é ainda quase que desconhecido nas bases do catolicismo. Neste âmbito ainda reina não poucas vezes a ideia de que o ecumenismo é algo errado, que não deve ser praticado, que não é desejado pela Igreja católica, que é mais ou menos proibido pela hierarquia. Práticas ecumênicas são colocadas muitas vezes à margem das comunidades. Não é prá menos, pois quase todos os cristãos (não só católicos, mas também) cresceram e foram educados ouvindo falar mal do outro. Este não é, pois um fenômeno exclusivamente católico. Também em outras Igrejas se pode observar que enquanto a hierarquia apoia o ecumenismo, nas bases ele é visto com desconfiança e rejeitado. Um passo importante para superar esta dificuldade é tematizar o ecumenismo dentro das próprias comunidades. Assim a comunidade poderá se defrontar com a questão, poderá perceber sua importância e necessidade, antes de ter uma experiência ecumênica direta, o que poderia chocar os desavisados.

Para se iniciar uma prática ecumênica no contexto das comunidades cristãs católicas, além da importância de a comunidade se defrontar com o tema e perceber sua importância antes de um contato direto com outra comunidade, há outros fatores que podem colaborar com o ecumenismo no âmbito das comunidades. Alguns fatores, sem ordem de importância:

a) O conhecimento mútuo. É de muita importância que as comunidades envolvidas em algum processo ecumênico se conheçam mutuamente, pelo menos minimamente. Ou seja, que o encontro ecumênico não aconteça entre dois corpos eclesiais estranhos. O conhecimento e amizade pessoal entre membros das Igrejas envolvidas num processo ecumênico podem ser de muita valia. É interessante para isto que a comunidade eclesial saiba algo sobre as outras comunidades: sua história, sua organização, sua forma litúrgica, suas tradições e coisas semelhantes.

b) O contato como comunidade. É importante que o contato ecumênico aconteça no âmbito da comunidade de fé. A presença de um grupo de fiéis de forma conjunta é importante no processo ecumênico devido às inseguranças que ainda cercam a questão. O contato com outra Igreja, sendo ele feito como comunidade de fiéis e não de forma ou iniciativa individual, dá às pessoas envolvidas no processo uma maior segurança e identidade com o seu grupo. Assim, seria de muita valia que pudessem ocorrer – sobretudo em ocasiões especiais como aniversário de fundação da comunidade ou natalício da liderança – visita de um grupo de pessoas da comunidade.

c) O valor dos gestos. A linguagem simbólica e de gestos é por vezes muito mais profunda e convincente que o discurso teórico. Isto precisa ser também utilizado no âmbito ecumênico. É importante valorizar gestos simbólicos que demonstrem o espírito de unidade. Gestos de deferência, de respeito mútuo, de benquerença transmitem com eficácia o desejo de unidade.

d) A importância da participação das lideranças eclesiais. As lideranças eclesiais têm um papel importante e decisivo no processo ecumênico para a comunidade. Para muitos cristãos católicos – e talvez também para cristãos de outras denominações – é uma novidade que a sua Igreja seja a favor do ecumenismo. Ainda há muita insegurança em relação ao contato religioso com o confessionalmente outro, em relação ao perigo que isto pode acarretar. Há ainda muitos cristãos católicos que pensam ser proibido na Igreja católica ter contato com cristãos de outras Igrejas. Estes medos e inseguranças são mais facilmente diminuídos quando as lideranças eclesiais participam de movimentos ecumênicos, deixando assim claro que a Igreja – como instituição – está envolvida no processo de busca de unidade entre os cristãos. Uma posição clara da liderança eclesial constituída, em favor do ecumenismo, contribui para tirar muitas dúvidas e inseguranças da cabeça dos fiéis a respeito do contato com comunidades eclesiais de outras confissões.

 

6.3 Problemas comuns do cotidiano ecumênico

A tentativa de promover a unidade entre os cristãos muitas vezes esbarra em problemas do cotidiano que, apesar da boa vontade de se procurar ecumenismo, por vezes fazem a boa vontade fracassar. São muitas das vezes questões menores e até prosaicas, mas que para quem está na base são pontos de embate com os membros de outras denominações. Sem querer dar solução, apontamos aqui alguns destes problemas:

a) A questão das imagens. Um dos pontos de divergência mais comuns entre cristãos de diversas denominações é a questão das imagens. De um lado estão os católicos com uma grande tradição no que diz respeito ao costume de usar imagens de santos em suas casas e em seus tempos e do outro lado está a posição diversas Igrejas contra uso de imagens. Para se justificar a posição contrária às imagens, se utiliza passagens bíblicas onde há a proibição de adorar imagens. Mesmo fazendo a distinção de que os católicos não adoram imagens, mas sim as veneram, temos que reconhecer que às vezes há por um lado um certo exagero no ceio do catolicismo no tocante à utilização de imagens, usadas quase que como objetos mágicos e por outro uma intolerância no que diz respeito à tradição no uso de imagens. É preciso reconhecer que há exageros parte a parte. Em segundo lugar é importante para os católicos, recordar aqui o texto da Unitatis Redintegratio (n. 11), onde o Concílio Vaticano II expõe e assume a ideia da "hierarquia de verdades", ou seja, nem todos os pontos da doutrina cristã católica podem ser colocados no mesmo nível. Assim, a veneração de imagens é um destes pontos de importância secundária em relação às verdades centrais da fé, as verdades que dizem respeito a Deus, a Jesus Cristo, ao Espírito Santo, ao Evangelho. Não se deve fazer esta questão do uso das imagens mais importante do que ela é. Talvez a utilização da argumentação da imagem como recordação de pessoas importantes na história da Igreja (como se tem uma fotografia para recordar da mãe, do pai, da esposa, dos filhos) possa ajudar na conversa. Mas é preciso ter claro, no cotidiano ecumênico, que há uma divergência entre as diversas confissões cristãs no que diz respeito ao uso, lugar e importância das imagens.

b) As “divergências doutrinais". Sem dúvida há divergências doutrinais entre as diversas Igrejas. Elas não são poucas e nem são fáceis de serem resolvidas (se é que precisam ser resolvidas). Na base, nas comunidades ocorrem muitas vezes discussões do tipo: "a minha Igreja acredita nisso", "a tal Igreja acredita naquilo". São divergências mais de pontos de vista que de questões doutrinais importantes e estas discussões acabam levando a uma busca do "quem tem razão". Estas discussões acabam por vezes apenas aprofundando divergências desnecessariamente. É importante que o fiel de cada Igreja conheça a tradição de sua Igreja para ter firmeza na argumentação. Mas deve ter também tal abertura para dizer que o outro tem uma interpretação diferente. O conhecimento da própria tradição e o respeito à diversidade de opiniões e interpretações em muito ajuda a diminuir tensões desnecessárias.

c) A Igreja verdadeira. Outro assunto que muitas vezes causa polêmica no cotidiano ecumênico é a discussão sobre "qual é a verdadeira Igreja?". Em primeiro lugar é preciso fazer uma observação óbvia: cada fiel está convencido ser a sua Igreja a verdadeira. Se assim não fosse, ele lá não estaria. É importante que cada fiel esteja convencido de sua Igreja, mesmo que isto seja um dos pontos de discórdia. Entrar, pois nesta discussão sobre a "verdadeira Igreja" é entrar num beco sem saída. Este é, portanto um ponto a ser respeitado: que cada qual defenda ser a sua Igreja a verdadeira. O que, porém às vezes acontece neste nível da discussão é que se atribua à Igreja funções e tarefas que não são suas. Por exemplo: quem está nesta Igreja está salvo, quem está naquela Igreja está perdido. Ora, não é função da Igreja decidir sobre a salvação ou perdição. O Evangelho pede expressamente que não julguemos e diz que a Deus cabe o julgamento sobre a salvação ou perdição. É, portanto muita pretensão atribuir à Igreja (seja ela qual for) a importância devida somente a Deus.

d) O Papa é a besta do apocalipse (ou o anti-Cristo). Eis outra questão-problema do dia a dia de convivência entre cristãos, principalmente entre fiéis católicos e fiéis de Igrejas onde esta opinião contra o papa é propagada. Trata-se de uma opinião que revela fanatismo e falta de vontade para o diálogo. Neste nível de nada adianta entrar em discussões, pois se trata simplesmente de falta de um mínimo de respeito diante do outro. Saber calar, em certas circunstâncias, também pode ser uma atitude dialogal.

e) A nossa Bíblia é verdadeira, a outra é falsa. O fato de nas tradições eclesiais cristãs haver duas listas de livros canônicos é muitas vezes motivo para acusação de falsidade a respeito desta ou daquela Bíblia. A diferença entre as listas de livros canônicos remonta à origem da formulação da lista canônica. Não se trata, portanto, de haver uma lista falsa e outra verdadeira, mas simplesmente de haver listas com diferenças (diferenças, aliás, que em se considerando o todo do texto bíblico, não são assim tão expressivas). Nesta discussão, pois sobre a verdadeira ou a falsa Bíblia, ajudaria muito o conhecimento sobre a origem destas divergências sobre os textos.

f) O católico bebe e o crente só está atrás de dinheiro. Outros problemas que muito atrapalham o dia-a-dia ecumênico são as generalizações e os estereótipos, como os acima citados (e muitos outros). Não se pode generalizar do comportamento de uma pessoa para todos os fiéis daquela Igreja, nem se pode julgar uma Igreja pelo comportamento de um de seus fiéis. Como católicos acham injusto que se julgue a sua Igreja pelo mau comportamento de algum de seus membros, também não se pode rotular os membros de uma outra Igreja pelo comportamento (errôneo) de algum de seus fiéis. Estas generalizações são injustas, contribuem apenas para reforçar preconceitos muitas vezes já existentes e só aumentam a distância entre cristãos.

 

6.4 Algumas indicações simples e práticas

Neste "ecumenismo a varejo" há também coisas pequenas que não fazem propriamente parte do processo ecumênico, mas podem para ele quando percebidas. Trata-se de alertar para coisas do bom senso, para detalhes que podem ajudar na convivência ou pelo menos não suscitar provocações no relacionamento entre fiéis de diversas Igrejas, por vezes sensíveis e facilmente irritáveis.

a) O alto-falante. Não se trata de um instrumento propriamente ecumênico, mas sem dúvida com o poder de azedar as relações entre Igrejas diversas. Ou seja, faz parte do bom senso e do espírito ecumênico não colocar sistema de som em público de tal modo a irritar (ou provocar?) os outros.

b) A procissão. Muitas comunidades (principalmente da tradição católica) têm o costume de fazer procissões, levando inclusive um andor com a imagem do santo padroeiro. Outras comunidades condenam estritamente esta prática e sentem-se irritadas quando são feitas procissões que passam em frente à sua comunidade. Seria muito interessante que ao ser escolhido o roteiro da procissão, bem como o horário, houvesse uma atenção especial para se perguntar pela presença de outra Igreja neste trajeto e – se for o caso – saber do horário da celebração, para não coincidir que a procissão passe cantando em frente a outra Igreja que se encontra justamente em oração. Uma tal coincidência seria sem dúvida interpretada como provocação.

c) A sensibilidade mútua. Cada maneira de crer tem uma forma específica de expressão de fé. Os fiéis de uma determinada confissão têm uma sensibilidade de fé diferente dos de outra. É importante para o ecumenismo perceber e não ferir a sensibilidade mútua. Ou seja, se há coisas da parte do outro que podem ferir a minha sensibilidade, pode haver também coisas de minha parte que ferem a sensibilidade do outro. Para se saber isto, é preciso conhecer um pouco o outro, saber do seu modo de ser cristão, saber daquilo que lhe é agradável, como também daquilo que lhe é desagradável. Procurar evitar o que é desagradável ao outro é um bom sinal de espírito ecumênico. Como exemplo, podemos citar aqui a questão de acender velas, o uso de imagens, da recitação de determinadas orações, etc.

d) Evitar pontos de atrito. Há certos assuntos que são lugares comuns de atritos na relação entre cristãos, principalmente entre católicos e cristãos de algumas outras denominações. Entrar propositadamente nestes pontos em nada contribui para o relacionamento ecumênico. É mais prudente evitar estes pontos de atrito, pois uma discussão sobre eles em nada irá mudar a posição de ambos os lados, irá apenas colaborar para afastar as pessoas e acirrar os ânimos. Assim, por exemplo, a questão de Maria, das imagens, do Papa, do dízimo. As posições a respeito destes assuntos geralmente já estão fixas de tal modo que o bom senso humano pede que se evite estes pontos de atrito no encontro com o outro.

e) Vigiar a linguagem. Nosso modo de falar a respeito do outro muitas vezes revela preconceitos já enraizados em nossa vida. Estes preconceitos por vezes cresceram conosco e nem nos damos conta que a linguagem que utilizamos para nos referir ao outro pode ferir, maldizer ou ofender os irmãos de outra confissão. É importante fazer um esforço pessoal no sentido de vigiar a própria linguagem, evitando expressões e, sobretudo piadas que depreciam a imagem do outro.

f) Combater os crentes. Em muitos católicos ainda persiste uma atitude pré-conciliar no sentido de acharem correto que se deve "combater os crentes". Esta atitude não mais é condizente com a posição oficial do catolicismo frente a outras denominações de modo que deve ser superada. Chega-se inclusive às vezes querer que haja nas comunidades mais estudos bíblicos para poder "melhor combater os crentes". Que seja estudada – cada vez mais – a Bíblia nas comunidades, mas nunca como preparação para a guerra contra os outros.

g) Utilizar assuntos comuns. Uma conversa ou troca de ideias entre membros de diversas Igrejas decorre com muito mais fluência quando são postos assuntos comuns. Principalmente os Evangelhos oferecem muitos temas de conversa onde – mesmo havendo divergência de interpretação – a discussão pode ser proveitosa para ambos os lados.


 

Conclusão:

O sonho do Pai – Uma parábola ecumênica

 

            Jesus, quando enviou os seus discípulos a pregar, disse que quando entrassem em uma casa, a primeira coisa que deveriam dizer era: "A paz esteja nesta casa". Certamente Jesus usou a palavra shalom, que quer dizer paz num sentido amplo: benquerença, bem-estar, fraternidade, união no amor e partilha.

            E assim os cristãos saíram para anunciar shalom às pessoas, para serem mensageiros da paz. E a Bíblia diz: "Felizes os pés de quem anuncia a paz". Esse era o Evangelho anunciado pelos seguidores de Jesus: a boa-nova, a boa-notícia da paz. Serem mensageiros da benquerença, da fraternidade era a missão dos seguidores do mestre. E eles conseguiram em poucos anos contagiar uma grande região, estes mensageiros da paz. Foram se formando comunidades que queriam viver como o mestre havia ensinado: no amor mútuo, na partilha, na fraternidade, no shalom. E os outros diziam quando os viam: "Vede como eles se amam!". E esses grupos foram chamados de cristãos, aqueles que seguem o mestre que mandou dizer "A paz esteja convosco". Essas comunidades eram o lugar concreto onde se criava um espaço para a paz, a fraternidade, a união de todos. Havia, claro, problemas nas comunidades, nem tudo funcionava às mil maravilhas, havia atritos. Mas estes eram secundários: o importante era estar apaixonado pelo mestre, pelo seu modo fraterno de vida e anunciar que ele não estava morto, que ele vivia, que ele estava presente onde sua mensagem se tornasse realidade, que ele estava ali na figura de cada ser humano, que ele estava presente no faminto, no sedento, no sem roupa, no prisioneiro... e que a ação em favor deste seria uma ação em favor dele mesmo. E mais que isso, os cristãos passaram ter a certeza de fé de que onde o pão fosse repartido, onde o vinho fosse compartilhado, ali se estava celebrando verdadeiramente a sua memória, pois se recordavam das palavras do mestre havia dito após a partilha do pão e do vinho: "Fazei isto para lembrarem de mim". E assim o mestre continuava presente realmente onde se estava vivendo o que ele havia anunciado. E todos os que viviam sua mensagem tinham a certeza de que não o faziam em nome próprio, mas dele, pois Jesus é o Senhor. E assim sua presença entrou na história através das comunidades de cristãos...

            Séculos mais tarde o próprio mestre resolveu visitar a terra de novo pessoalmente. Como já havia feito da primeira vez, tomou a forma de uma pessoa, e foi passear pelo mundo. Resolveu visitar os seus discípulos. Com alegria constatou que havia muitas comunidades. E resolveu olhar a coisa mais de perto. Entrou numa comunidade onde se lia na frente "Assembleia de Deus". Participou do culto e achou muito interessante: havia muita alegria no canto, muita empolgação na pregação. Ficou muito feliz em poder participar e ao final apresentou-se ao dirigente do culto. Este, por sua vez, não cabia em si de tanta felicidade em saber que Jesus estava pessoalmente na comunidade.

            E Jesus continuou sua visita. Entrou numa outra Igreja. Não havia nada escrito na frente, mas ao perguntar, soube que se tratava da Igreja do Sagrado Coração de Jesus. E estavam celebrando ali a memória da última ceia. Jesus ficou até emocionado ao ver que o que dissera há muito tempo, continuava sendo repetido "em memória dele". Ali também havia cantos, pregação, oração. Achou até interessante alguns detalhes dali. Viu como davam importância à tradição, à história e para não deixar a memória passar, colocavam figuras de pessoas que haviam vivido intensamente sua mensagem. Encontrou até uma figura representando sua mãe. No final da celebração, Jesus foi falar com o sacerdote e se apresentou a ele. Este ficou tão surpreso e alegre, que queria logo falar com o bispo e convocar todos os sacerdotes para dar a boa-nova da presença de Jesus na comunidade.

            Depois disto, Jesus foi a uma outra comunidade. Viu que se tratava da Igreja adventista. As palavras que ele dissera há tanto tempo, ali também eram conservadas e todos tinham a certeza de sua presença. Após a reunião, Jesus quis saber do coordenador por que se chamavam Igreja adventista? Este explicou que o nome da Igreja vinha do fato de crerem que Jesus iria voltar, numa volta definitiva para desencadear um tempo de felicidade total. Quando Jesus se deu a conhecer, o pastor quase teve uma parada cardíaca. Mal conseguiu perguntar se o fim do mundo estava começando. Jesus o tranquilizou e disse que se tratava apenas de uma visita e não de sua vinda definitiva. O pastor ficou feliz com a visita e pensou: como vou explicar no próximo culto que Jesus esteve aqui pessoalmente? Será que vão crer em mim. Jesus deu a ele uma dica: Recorde ao pessoal o que eu disse no meu tempo: quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali presente. O pastor despediu-se esfregando as mãos de felicidade.

            E Jesus continuava seu itinerário. Passou em frente a outra Igreja e achou o nome dela até engraçado: "Igreja do Evangelho Quadrangular" e pensou "de que se trata?" Sua dúvida foi desfeita quando um membro da comunidade lhe explicou: A Igreja se chama quadrangular, porque anunciamos Jesus Cristo que é Salvador, que batiza no Espírito Santo, que cura e que é o Rei. E Jesus disse: "muito bem pensado". Jesus participou do culto e gostou da animação, da vibração. Gostou também que tivessem conservado a memória da cura pela oração, pela imposição das mãos, como ele fizera em seu tempo. E lembrou-se da felicidade do cego que estava à beira do caminho e por sua oração passou novamente a enxergar. O pastor ficou muito feliz quando soube da presença de Jesus no culto.

            O mestre continuou sua andança. Viu uma outra casa de discípulos. Entrou para ouvi-los e soube que se tratava de uma Igreja presbiteriana. Ali se dava muita importância à palavra e a tradição do canto também era cultivada com esmero. Jesus gostou da pregação do reverendo pastor. Nesta Igreja, segundo explicaram a Jesus, um grupo de presbíteros e presbíteras era responsável pelas comunidades. Jesus se lembrou de suas palavras: que entre vocês não haja alguém que queira ser maior, mas que todos sejam irmãos. Aquela comunidade ficou cheia de alegria quando no domingo seguinte o pastor afirmou que Jesus estava ali presente.

            Depois foi Jesus a uma outra comunidade: Igreja Batista. O culto foi muito belo e cheio de emoção. Gostou de ver que suas palavras ainda tocavam o sentimento e o coração dos discípulos, mesmo quase dois mil anos depois. Quando Jesus se apresentou ao pastor, após o culto, este ficou tão animado que queria iniciar logo uma campanha de casa em casa para anunciar a presença de Jesus Cristo na comunidade. Jesus o incentivou e disse: tenha a certeza da minha presença sempre que você anunciar a boa-notícia. E na saída perguntou ao pastor se ele lembrava qual a instrução do mestre para a situação de entrarem em uma casa. Ele sabia a resposta na ponta da língua: "Devo dizer, 'a paz esteja nesta casa'". Até Jesus ficou edificado em ouvir que suas palavras continuavam presentes.

            Após ter visitado esta e muitas comunidades mais, Jesus estava bastante animado e teve uma ideia: "Vou reunir todos os meus discípulos da cidade para fazermos uma grande festa. Direi a todos uma palavra, os incentivarei a continuar e no final da reunião posso inclusive multiplicar os pães e os peixes, transformar água em vinho e assim fazermos uma grande festa".

            Animado com a própria ideia, voltou a procurar as Igrejas que tinha visitado. Todos logo se alegravam ao saber que Jesus estava presente na comunidade. E Jesus começou a expor a sua ideia de reunir todos, de fazer uma festa. Qual não foi a sua surpresa ao ouvir as reações. A coisa não era tão simples assim, reunir os discípulos. Cada um mostrava ao mestre como estava desatualizado e desinformado. "Você por acaso pensa que todas as Igrejas tem a mesma seriedade?"; "Não sabe que existe muita Igreja que só serve para enganar o povo?"; "Parece que você é ingênuo, pois os pastores daquela Igreja só pensam no dinheiro. Com gente assim eu não me reúno"; "Então parece que você não sabe que aquela Igreja adora imagens e isto é proibido, de modo que não se pode reunir com eles?"; "Então você não sabe que esse negócio de pura emoção nos cultos é só para enganar, para desviar a atenção dos verdadeiros problemas sociais?"; "Não podemos nos reunir com aqueles que não estão na tradição dos apóstolos. Então não vale de nada a sucessão apostólica e ordenação sacerdotal?"; "Parece que você é mesmo ingênuo e não sabe que algumas Igrejas são pura fachada, que são apoiadas pelos Estados Unidos para combater as reformas sociais". Outros achavam a ideia muito estranha: "Mas uma reunião de todas as Igrejas?"; "Isto não é causar muita confusão?"; "Não é misturar religiões?" Quando Jesus tentava perguntar por que estavam divididos, ouvia como resposta outra pergunta: "Por que deveríamos estar unidos?" Alguns ficaram inclusive escandalizados quando Jesus confirmou a sua presença em todas estas Igrejas e que a sua presença era uma alegria para todos.

            O mestre, porém não desanimou e, apesar das dificuldades expostas, convidou a todos para a reunião. Não foram muitos os que apareceram. Jesus passou uma olhada no público e disse consigo mesmo: "Pode ser que não seja muita gente. Mas já está melhor que da outra vez que aqui estive. Daquela vez somente 12 é que ficaram comigo o tempo todo e mesmo assim, na hora do apuro, um ainda caiu fora. Hoje são 18 aqui; já dá para começar". E a estes que se reuniram, Jesus anunciou:

            "Como em minha primeira vinda, eu continuo anunciando o que o Pai me ensinou. E o Pai me disse que tem um sonho. E me contou esse sonho dizendo: 'Eu sonho com o dia em que todos os meus filhos e filhas sejam um, sejam uma unidade de amor e fraternidade, assim como nós dois somos um. Eu sonho com o dia em que todos vivam no amor, pois permanecendo no amor eu permaneço em todos e todos permanecem em mim. Eu sei que toda a criação sofre e geme dores, até o dia em que estiver reconciliada comigo e eu serei tudo em todos. Eu sonho com o dia em que todos vão seguir os dois mandamentos principais, dos quais deriva toda lei e os profetas: que cada qual ame a mim e ao próximo como a si mesmo. Sonho com o dia em que não mais haverá divisão, nem mais ódio, nem mais tristeza, quando não mais haverá calúnia, não mais haverá desconfiança...'" E assim Jesus continuou a contar a todos o sonho do Pai e falou de uma maneira tão serena que muitos começaram a sonhar junto com ele.

 

V. J. Berkenbrock