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Volney Berkenbrock
Teologia ecumênica - Capítulo 4 PDF Imprimir E-mail

 

Capítulo 4 – Propostas ecumênicas eclesiais

 

A partir do testemunho de Jesus Cristo que nos foi deixado no Novo Testamento e, sobretudo a partir dos Evangelhos, não nos é possível justificar as divisões entre os cristãos. A divisão é - como já foi afirmado anteriormente - um escândalo que em nome do Evangelho e da credibilidade da fé precisa ser superada. O mesmo Novo Testamento porém é testemunha, de que a unidade é desde início uma dificuldade dentro do Cristianismo.

Esta unidade não conseguiu se mantida durante a história do cristianismo. Surgiram muitas divisões, algumas em consequência de diferenças teológicas, outras por disputas internas em alguma Igreja, outras por diferenças culturais. Este processo de divisões e de surgimento de novas Igrejas continua até hoje e certamente não há ano em que não surja uma nova Igreja. Especialmente dentro do fenômeno pentecostal, esta multiplicação rápida de instituições é uma constante.

A partir do final do século XIX e sobretudo durante o século passado, ao lado do processo de divisões e de surgimento de novas Igrejas, processo este que não parou, foi aos poucos surgindo a consciência da necessidade de se iniciar o caminho contrário, ou seja, o caminho da unidade. Esta consciência da necessidade da unidade atinge hoje os setores maiores do cristianismo e a grande aos poucos a grande maioria dos fiéis de Jesus Cristo.

A consciência da necessidade de unidade torna-se larga dentro do cristianismo. Mas ao mesmo tempo se pergunta: o que se entende por unidade? É unidade institucional? É unidade hierárquica? É unidade de ação? É unidade de acordo entre vários partidos? É uma unificação de instituições, ritos, hierarquia, doutrina, costumes... de modo que haja uma uniformidade no mundo cristão?

Seguindo o que havíamos exposto no ponto 2. (“Se o Senhor não...”), temos que recordar aqui que a unidade básica não é resultado de nenhum projeto de unidade, mas sim da ação do próprio Espírito. Outrossim, há já uma unidade básica entre os cristãos, unidade esta que não pode ser destruída, que é a fé em Jesus Cristo, no Deus uno e trino. Em termos base de fé há, pois, unidade. Quando se fala em projeto ecumênico de unidade, se está pensando porém em algo mais concreto e visível que a unidade em Espírito - sem a qual a unidade visível não se sustenta. “A unidade é dom, mas constitui ao mesmo tempo tarefa e responsabilidade”[1]. Na consciência desta responsabilidade, diversas instâncias ou instituições cristãs elaboraram com o tempo propostas de unidade. Vejamos as quatro propostas mais significativas: a luterana, a do Conselho Mundial de Igrejas, a do ecumenismo de base e a proposta da Igreja Católica[2].

 

4.1 A proposta luterana

Para se examinar a proposta ecumênica das igrejas advindas da tradição luterana, faz-se necessário primeiro evidenciar a existência das chamadas “famílias confessionais”. As muitas Igrejas existentes dentro do cristianismo formam - por tradição, por origem e pelo modo de ser - grupos entre si, que têm muitos fatores em comum. Geralmente as Igrejas nascidas de uma tradição continuam tendo uma certa unidade. A estes grupos de Igrejas dentro do cristianismo, dá-se o nome de “família confessional”. Há assim a “família anglicana”, a “família luterana”, a “família reformada” e se pode falar inclusive da “família católica”. Entre as Igrejas de uma determinada família, há uma maior unidade e, pelo menos teoricamente, mais espaço de diálogo. Há inclusive organismos que reúnem estas “famílias confessionais”. Um dos mais importantes e ativos deles é o que reúne a família luterana, a Federação Luterana Mundial, fundada em 1947 (antes havia já a Convenção Luterana Mundial).

A própria organização em “famílias” já é um passo ecumênico. Esta organização tem porém, em primeiro lugar, a função de preservar as tradições e características de determinada família. “Há nelas, certamente, aspectos que enriquecem a vida de todas as igrejas. Daí sua insistência em propor como projeto de unidade a reconciliação das diversas igrejas, o diálogo, a aproximação, o fim da competição e da desconfiança entre as diferentes confissões cristãs”[3]. J. H. de Santa Ana observa criticamente, porém, que a organização das famílias confessionais ainda está longe de representar o todo da determinada família, pois geralmente esta ligada ao norte do hemisfério, à origem da confissão, não representando - muitas vezes - a realidade da maioria dos fiéis desta confissão que vive em condições adversas no hemisfério sul do planeta[4].

Dentro desta realidade da vantagens e desvantagens das famílias confessionais, há a proposta ecumênica da Federação Luterana Mundial, aceito e assumido por outras famílias, que “é no fundo uma expressão de aproximação fraterna de caráter interconfessional. Mais do que uma reconciliação das massas que compõem as igrejas, trata-se de um diálogo entre corpos eclesiásticos que até há pouco não tinham relação entre si. (...) Pelo fato de não ser assim, a nível da vida das igrejas, o projeto ecumênico das famílias confessionais mundiais praticamente logo se esgota como projeto ecumênico. A ‘diversidade reconciliada’ se concretiza quando se alcança um nível de diálogo respeitoso, cortês, fraterno, entre católicos romanos, ortodoxos, luteranos, reformados, anglicanos, batistas, metodistas, pentecostais, ‘evangelicals’, fundamentalistas, etc.”[5] Neste projeto há o avanço que é o reconhecimento mútuo, mas é insuficiente por se esgotar nele, não mudando, na prática, nada da situação atual. Ou seja, cada qual continua no mesmo lugar, apenas olhando para o outro com bons olhos.

 

4.2 A proposta do Conselho Mundial de Igrejas

O Conselho Mundial de Igrejas, como já foi frisado acima, é o maior organismo ecumênico do cristianismo e sendo tanto o maior fórum de diálogo entre cristãos, como também a maior expressão da ação conjunta dos cristãos em favor de projetos concretos. Mais de 300 Igrejas cristãs compõem este conselho. Nem por isso se pode dizer, que com o CMI o ecumenismo (a unidade) já seja uma realidade fácil ou presente. Várias dificuldades e oposições acompanharam o trabalho do CMI. De um lado havia a crítica de Igrejas conservadoras, de que o CMI era um Conselho que pretendia finalmente levar as Igrejas nascidas da Reforma de volta ao ceio da Igreja católica. As Igrejas que tinham este temor, fundaram inclusive um organismo concorrente do CMI, o Conselho Internacional de Igrejas. Por outro lado havia o temor de muitas Igrejas, de que o CMI poderia transformar-se numa “supra-Igreja”, que com o tempo iria interferir em questões internas de cada Igreja, ou que fosse um organismo a controlar/legislar para as Igrejas que o compusessem. Por causa justamente destes temores, o CMI definiu na Assembleia Geral de 1975 (em Nairóbi) sua posição frente ao ecumenismo, afirmando que entende a unidade das Igrejas a partir das igrejas locais; uma unidade, pois, a partir da base. Vejamos a declaração de Nairóbi a respeito: ”A Igreja é única e deve ser concebida como uma unidade conciliar de igrejas locais que estão verdadeiramente unidas. Nessa unidade conciliar, cada igreja local possui, em comunhão com as outras, a plenitude da catolicidade; dá testemunho da mesma fé apostólica e, por conseguinte, reconhece que as outras igrejas pertencem à mesma Igreja de Cristo e são guiadas pelo mesmo Espírito. Como afirmou a Assembleia de Nova Delhi, estão juntas porque receberam o mesmo batismo e participam da mesma Eucaristia; reconhecem reciprocamente seus respectivos membros e ministérios. São uma só igreja no compromisso comum de confessar o Evangelho de Cristo, proclamando-o e o apresentando ao mundo. Cada Igreja tende para este objetivo mantendo, sustentando e enriquecendo as relações com suas igrejas irmãs, que se manifestam em reuniões conciliares quando o cumprimento de sua vocação comum o exigir”[6]. Nesta declaração há - como muito bem observa J. H. de Santa Ana[7] - cinco pontos que caracterizam a compreensão ecumênica do CMI. a) A unidade é entendida a partir da base e não da cúpula; ou seja, a unidade acontece enquanto e à medida que as diversas Igrejas estiverem unidas e não à medida que um organismo de unidade exista. Esta compreensão apoia-se sobretudo na visão de Paulo: a Igreja é a Igreja local. b) A unidade não é um acordo de cúpula, mas o estar concorde dos membros da Igreja no testemunho de Jesus Cristo. O não testemunho comum - pelo contrário - o testemunho da divisão dos cristãos mesmos, é que impede a realização do ecumenismo. c) Nesta unidade entendida a partir da base (das Igrejas locais) e a partir do testemunho, elimina-se na unidade o problema da maior ou menor importância de determinada Igreja, do maior ou menor número de membros. Nesta concepção, o ecumenismo não acontece enquanto as Igrejas (como instituições) "se entendem" (e aqui reside um problema do diálogo, pelo fato algumas Igrejas terem maior representatividade que outras), mas enquanto há uma relação fraterna. d) No projeto do CMI há a preocupação, em sua organização, de que o organismo mesmo espelhe em sua estrutura a diversidade de Igrejas, não apenas como instituições, mas como Igrejas em diversos contextos. Há assim a preocupação com a representatividade dos diversos continentes, regiões e culturas e não apenas de diversas Igrejas. e) Em último lugar, o projeto ecumênico do CMI tem um outro aspecto interessante, que é não entender o ecumenismo como uma questão eclesial apenas. O diálogo de unidade deve envolver também a diversidade de culturas, de formas de vida, de projetos ideológicos... Com isso o CMI não é apenas um organismo de diálogo entre cristãos com as suas instituições eclesiais, mas transforma-se num fórum possibilitador de um diálogo das culturas.

O CMI tornou-se também, como assinalamos acima, um fórum de expressão dos cristãos através do apoio a projetos. Neste sentido este organismo apoiou posições e campanhas decididamente por opções claras; nestes projetos se inserem o combate ao racismo, ao sexismo, a defesa dos direitos humanos, a condenação ao armamentismo e ao militarismo, o combate à tortura, a defesa do direito de autodeterminação dos povos contra a ingerência das grandes potências... Pode-se afirmar que o CMI tomou, através de seus programas e projetos, uma posição clara em favor dos desvalidos e contra a injustiça. Assim sendo, o CMI não entende seu papel como sendo o de facilitar o diálogo em função da unidade apenas ao nível da fé (e das Igrejas), mas também o de facilitar a unidade através de uma maior igualdade entre os seres humanos. "A busca da unidade da igreja não pode ser separada do empenho pela unidade da humanidade"[8].

 

4.3 O Ecumenismo através da base: Ecumenismo prático

Há de se observar, que o processo ecumênico não é apenas um processo desencadeado através de ação ecumênica específica das entidades eclesiais. Desde o seu início, a ideia ecumênica teve seu impulso também através de articulações de pessoas que buscaram a unidade através de ações concretas. Este ecumenismo que nasce através de ações concretas do povo pode ser chamado de "ecumenismo prático".

Este ecumenismo prático acontece lá onde os cristãos de diferentes credos e Igrejas assumem em comum o projeto de Jesus, o projeto do Reino de Deus. "O Reino é justiça, libertação, redenção dos oprimidos, cura das doenças, ressurreição dos mortos, esperança para os cativos, alegria dos pobres, felicidade das crianças. Em resumo, o Reino expressa as expectativas de todos aqueles que não ocupam posições de poder ou de privilégio na sociedade, para que irrompa uma sociedade nova. Jesus realizou seu ministério anunciando que tudo isto se cumpria com sua vinda (cf. Lc 4,17-21). O projeto ecumênico popular toma corpo a partir do momento em que, em situações bem concretas, homens e mulheres de todas as convicções se unem para se empenharem em tornar realidade tudo o que Jesus nos trouxe"[9].

Este movimento ecumênico cresceu pois em espaços não primeiramente eclesiais (como sindicatos, partidos políticos, movimentos de defesa dos direitos humanos, movimentos contra o racismo...), mas foi sem dúvida impulsionado pela fé dos cristãos que atuavam nestes espaços. No Brasil, exemplos típicos deste "ecumenismo prático" pode ser encontrado na luta pela reforma agrária e na luta em favor da causa indígena.

O ecumenismo prático não tem um projeto elaborado nem um objetivo preestabelecido. Ele vai acontecendo através da prática. Assim sendo, pode-se falar em um ecumenismo que é consequência de uma prática, consequência esta que por vezes é mais consciente, por vezes obra do acaso. Este ecumenismo prático é, sem dúvida, um dos caminhos importantes a serem utilizados para que a unidade aconteça. Há, porém, de se alertar para o perigo de se radicalizar esta posição, no sentido de defender a ideia de que é importante o projeto (em comum) que as pessoas têm e não sua fé. Esta posição supõe que há uma divisão entre fé e vida, entre aquilo que se crê e o projeto pelo qual se luta. Uma fé bem entendida não pode ser vista como desligada da vida. É parte integrante da fé sua dimensão prática e social, bem como a celebrativa e teológica[10].

 

4.4 A proposta católica

Como já havia sido assinalado acima, a Igreja Católica teve por longo tempo uma posição reticente frente ao movimento ecumênico que nascera no seio das Igrejas evangélicas. Não que esta posição reticente perante o ecumenismo tenha sido a posição de todos os membros da Igreja Católica. Mas a nível de instituição o movimento ecumênico nascente foi visto com certa desconfiança. Diversos são os fatores que influenciaram esta posição. Entre eles podem ser citados a forte ligação e o zelo do Catolicismo pela tradição, os ressentimentos históricos contra outras igrejas cristãs, a concepção de ser a Igreja católica a única legítima guardiã da herança de Jesus Cristo, etc.

O ecumenismo nascera dentro das Igrejas evangélicas como um movimento de leigos (sobretudo jovens) só depois foi assumido pelas instituições eclesiais. No catolicismo não foi diferente. Antes de ter sido assumido pela instituição, fiéis católicos engajaram-se em movimentos ecumênicos. Neste engajamento ecumênico leigo há de se destacar a organização de cristãos de diversas denominações na luta contra o nazismo e o fascismo. Neste engajamento houve a possibilidade concreta de se superar barreiras e preconceitos em favor de uma causa maior. Deste e outros engajamentos cresceu dentro da Igreja Católica a consciência da importância da busca da unidade. O marco de mudança de posição da Igreja Católica na questão ecumênica é, porém a atuação do Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II. O Papa João XXIII havia criado em junho de 1960 o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Do Concílio Vaticano II são dois os documentos relevantes a respeito da questão ecumênica: o decreto "Unitatis Redintegratio" (UR, aprovado em 20/11/64), que apresenta a posição da Igreja na questão ecumênica, bem como o projeto católico para a unidade cristã e a declaração "Dignitatis Humanae" (DH, aprovado em 7/12/65), sobre a liberdade religiosa. Esta declaração é importante para o ecumenismo à medida em que coloca claramente a superação da antiga posição "extra ecclesiam nula salus" (fora da Igreja não há salvação) e reconhece o direito de toda pessoa de optar livremente por uma religião e por uma Igreja. Vejamos mais de perto a posição da Igreja exposta no Concílio através da UR.

 

            a) Vaticano II: “Unitatis Redintegratio”

O documento conciliar começa afirmando que a partir de Jesus Cristo existe uma única Igreja e a divisão hoje existente entre os cristãos é reconhecida como um escândalo e como contradição à vontade de Jesus Cristo (UR 1). Por isso o movimento de unidade dos cristãos é classificado como obra impulsionada pelo Espírito Santo. Após reconhecer a divisão como escândalo, o documento afirma ser a Igreja católica legítima herdeira de Jesus Cristo através da sucessão apostólica que nela existe.

A mudança da posição da Igreja católica na questão ecumênica vem claramente porém no nº 3 da UR, onde primeiro se reconhece que as divisões surgidas no cristianismo durante a história aconteceram "algumas vezes não sem culpa dos homens de ambas as partes" (UR 3), e em segundo lugar se afirma a unidade básica dos cristãos no batismo: "Aqueles que crêem em Cristo e foram devidamente batizados ... são incorporados a Cristo e, por isso, com razão, honrados com o nome de cristãos e merecidamente reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor" (UR 3). Ou seja, os membros de outras Igrejas não são mais tidos primeiramente como hereges ou inimigos, mas como irmãos por causa da fé em Jesus Cristo. A identificação dos membros das outras Igrejas como irmãos na fé, leva a Igreja católica a reconhecer também as outras instituições (Igrejas) como instrumentos de salvação: "Portanto, mesmo as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham deficiências, de forma alguma estão destituídas de significação e importância no mistério da salvação. O Espírito Santo não recusa empregá-las como meios de salvação, embora a própria plenitude desses derive da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica" (UR 3). Esta afirmação, de que a "plenitude de graça e verdade" foi confiada à Igreja Católica marca a proposta ecumênica da Igreja Católica: a unidade em torno desta Igreja. Eis a afirmação do decreto conciliar: "Contudo, os irmãos de nós separados, tanto os indivíduos como as Comunidades e Igrejas, não gozam daquela unidade que Jesus Cristo quis prodigalizar a todos aqueles que regenerou e convivificou num só corpo e em novidade de vida e que as Sagradas Escrituras e a venerável Tradição da Igreja professam. Somente através da Igreja católica de Cristo, auxílio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação. Cremos também que o Senhor confiou todos os bens do Novo Testamento ao único Colégio apostólico, à cuja testa está Pedro, a fim de constituir na terra um só corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que, de alguma forma, pertencem ao povo de Deus. Este povo, enquanto peregrina cá na terra, cresce incessantemente em Cristo, ainda que sujeito ao pecado em seus membros e é conduzido suavemente por Deus, segundo Seus misteriosos desígnios, até que chegue, alegre, à total plenitude da eterna glória na Jerusalém celeste" (UR 3). A parte sublinhada da afirmação marca o que se costumou chamar de posição católica na questão ecumênica: a unidade deve se dar em uma só Igreja, em torno do colégio apostólico (que dizer, os bispos, como sucessores dos apóstolos), que tem à frente a pessoa do Papa. Tendo esta premissa como base, o decreto conciliar anima os católicos a participar do movimento ecumênico, deixando claro que cabe aos bispos a responsabilidade primeira de dirigir e promover o ecumenismo: "Este Sagrado Sínodo constata com alegria que a participação dos fiéis católicos na ação ecumênica cresce de dia para dia. Recomenda-a aos Bispos de toda a terra para que seja por eles prudentemente promovida e dirigida" (UR 4). Este engajamento pelo ecumenismo é visto pelo Concílio não como apenas um engajamento a nível religioso ou eclesial, não apenas a nível da oração e do coração, mas também através da colaboração mútua em projetos sociais. A cooperação entre os cristãos de diversas Igrejas "contribuirá assim para avaliar devidamente a dignidade da pessoa humana, promover o bem da paz, prosseguir na aplicação social do Evangelho, incentivar o espírito cristão nas ciências e nas artes e aplicar todo gênero de remédios aos males da nossa época, tais como: a fome e as calamidades, o analfabetismo e a pobreza, a falta de habitações e a distribuição não justa dos bens. Por essa cooperação todos os que crêem em Cristo podem aprender de modo fácil como devem conhecer-se melhor mutuamente e estimar-se mais e como se abre o caminho para a unidade dos Cristãos" (UR 12).

Além de marcar uma posição nova e positiva da Igreja católica em relação ao ecumenismo e reconhecer o enriquecimento que este traz tanto aos fiéis como à própria instituição Igreja, o decreto conciliar fornece pistas importantes para o futuro do movimento ecumênico: a oração em comum (UR 8), o conhecimento mútuo dos irmãos (UR 9), a importância de se introduzir o tema do ecumenismo no ensino religioso católico (UR 10) e que o ensino da doutrina na Igreja católica não deve ser feito com o espírito de disputa em relação ao outro, mas de compreensão (UR 11). Na questão do ensino da doutrina católica, o concílio introduz um conceito muito importante a ser considerado no trabalho ecumênico por parte dos católicos: "hierarquia de verdades"[11]. Com isso o Concílio deixa margem à flexibilidade no diálogo ecumênico e incentiva que se dê mais ênfase aos pontos centrais de nossa fé (que são comuns a todas as Igrejas) e se dê menos ênfase aos aspectos onde há maior divergência[12].

Resumindo: O Concílio Vaticano II, através do decreto "Unitatis Redintegratio" é um marco na posição da Igreja católica no que tange ao ecumenismo. Quanto à avaliação deste marco, há divergências. Não há como negar que UR representa vários avanços: o reconhecimento do ecumenismo como obra o Espírito Santo, o engajamento da Igreja católica no movimento ecumênico, o incentivo aos fiéis para que participem de ações ecumênicas... Há porém outras posições na UR que são consideradas por muitos como obstáculos ou pelo menos dificuldades ao diálogo: a afirmação de que a Igreja católica e apenas a Igreja católica possui a plenitude da graça e da verdade, a afirmação de que o ecumenismo deve ser feito a partir da união do colégio apostólico tendo à frente o papa, a afirmação de que é necessário que as outras Igrejas se incorporem à católica...

            b) Carta Encíclica “Ut unum sint”

O Decreto conciliar "Unitatis Redintegratio", mesmo tendo pontos que podemos considerar problemáticos para o diálogo ecumênico, tornou-se um marco da caminhada ecumênica tanto para a Igreja católica, como para o Cristianismo em geral, pois a partir deste documento conciliar, o ecumenismo é também "coisa católica". Sendo a Igreja católica a maior das Igrejas cristãs, esta posição favorável do catolicismo quanto ao diálogo ecumênico re-impulsionou o diálogo como um todo no seio do cristianismo. O movimento ecumênico, que havia nascido - como bem o observa a UR - no seio das Igrejas evangélicas, torna-se também um movimento católico. Em muitos lugares do mundo é inclusive a Igreja católica que está se destacando na busca do ecumenismo. Tanto que em muitos países - entre os quais se pode incluir o Brasil - o ecumenismo é considerado por vezes uma ação da Igreja católica. E às vezes até mal interpretado como uma estratégia católica para conter o avanço das Igrejas evangélicas e querer reconduzir as outras Igrejas ao seio do catolicismo.

Após o Concílio foram muitas as iniciativas ecumênicas ocorridas dentro da Igreja católica. Não que antes do Concílio não houvesse tais iniciativas. Eram porém algo meio à margem da instituição. Com UR estas iniciativas passaram a ter o respaldo da Igreja católica como instituição. O Papa Paulo VI, que promulgara os dois documentos conciliares, também foi um grande incentivador do ecumenismo, mantendo e apoiando o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Marcante foi o gesto de Paulo VI de visitar a sede do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra (Suíça). João Paulo II continuou a apoiar a projeto ecumênico, tendo mudado o nome do Secretariado para Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos (em 28/6/88). O documento mais significativo de João Paulo II sobre o ecumenismo é porém a Carta Encíclica "Ut Unum Sint" (25/05/95).

A Carta Encíclica retoma a posição assumida pelo Concílio Vaticano II e faz uma espécie de balanço do ecumenismo desencadeado pelo concílio e os avanços conseguidos. Na introdução ao documento, João Paulo II faz diversas afirmações interessantes para a questão ecumênica. Ele reconhece que as divergências não são apenas doutrinais ou de compreensão da fé. Há outros fatores que atrapalham o movimento ecumênico. Entre eles, João Paulo II cita a herança de incompreensão e os equívocos e preconceitos herdados do passado; constata que há indiferença em relação ao outro, há falta de conhecimento mútuo, falta a "necessária purificação da memória histórica". O Papa reconhece a necessidade de que os cristãos todos reconsiderem juntos "o seu doloroso passado e aquelas feridas que este, infelizmente, continua ainda hoje a provocar"; é preciso reconhecer juntos "os erros cometidos e os fatores contingentes que estiveram na origem das suas deploráveis separações" (Ut unum sint, 2). Esta introdução ao documento tem uma visão realista das dificuldades e não hesita em dizer que da parte católica há também erros, incompreensões, falta de empenho e boa-vontade.

A maior novidade do documento Papal encontra-se porém sob o título "O mistério de unidade do Bispo de Roma" (nº 88-96). Neste tópico do documento, o Papa aborda abertamente a questão do primado do bispo de Roma, do primado papal portanto, na questão ecumênica. Após reafirmar a posição católica de que o primado do Papa está baseado na sucessão de Pedro e que este primado deve ser entendido como um primado de serviço, o Papa reconhece que justamente esta questão constitui uma dificuldade para o ecumenismo: "Por outro lado ... a convicção da Igreja Católica de, na fidelidade à Tradição apostólica e à fé dos Padres, ter conservado, no ministério do Bispo de Roma, o sinal visível e a garantia da unidade, constitui uma dificuldade para a maior parte dos outros cristãos, cuja memória está marcada por certas recordações dolorosas. Por quanto sejamos disso responsáveis, com o meu Predecessor Paulo VI imploro perdão" (88). Após esta afirmação, o documento papal sublinha o lugar do Bispo de Roma como herdeiro da missão de Pedro e de Paulo. Especialmente o papel especial dado a Pedro nos evangelhos é aqui destacado (nº 91). Em virtude disto é confiada ao Bispo de Roma uma função especial na Igreja: de ser sinal de unidade e de colocar seu ministério a serviço da unidade em Cristo.

Até aqui se constata a posição manifestada até então pela Igreja católica. Porém no número 95 do documento, o Papa afirma, porém que a caminhada ecumênica exige dele a responsabilidade de "encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova". E esta busca de uma forma de exercício do primado que seja adequada à nova situação, deve, como afirma a continuação do texto papal, ser feita em conjunto com as Igrejas: "O Espírito Santo nos dê a sua luz e ilumine todos os pastores e os teólogos de nossas Igrejas, para que possam procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério [do primado] possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros" (nº 95). Esta afirmação do papa é sem dúvida uma abertura na questão ecumênica e abre novas perspectivas, pois justamente a compreensão da função do primado do Bispo de Roma tem sido - como papa mesmo reconhece - uma pedra de tropeço no diálogo. É preciso pois agora procurar de fato e em conjunto esta nova forma do exercício do primado, que seja adequada à realidade e situação atuais, para que as palavras não fiquem mortas no texto.



[1] J. Bosch Navarro, Para compreender o ecumenismo, p. 27.

[2] Aqui tomaremos como base sobretudo J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, p. 69-121. Para outras propostas, confira: J. Bosch Navarro, Para compreender o ecumenismo, p. 29-41.

[3] J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 103.

[4] Cf. J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 104-105.

[5] J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 106.

[6] Citado aqui por J. H. de Santa Ana. Ecumenismo e Libertação, 109-110.

[7] Cf. J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 110-112.

[8] J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 115.

[9] J. H. de Santa Ana, Ecumenismo e Libertação, 117.

[10] Cf. M. Barros, O sonho da paz, 107.

[11] "Comparando as doutrinas lembrem-se que existe uma ordem ou 'hierarquia' de verdades na doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diverso" (UR 11).

[12] "O ecumenismo recebeu uma grande ajuda quando o Concílio reconheceu que as verdades da fé não são todas iguais. Todas não têm a mesma importância. Uma coisa é discutir a existência dos anjos, ou se Maria teve um ou vários filhos, e outra é discutir se Jesus Cristo é o Filho de Deus, ou se ressuscitou realmente. Há uma hierarquia das verdades da fé que possibilita muito mais o diálogo com as outras Igrejas e a valorização dos pontos que nos unem". M. Barros, O sonho da paz, 125.