Teologia ecumênica - Capítulo 3 |
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Capítulo 3 – Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os que a constroem: O Espírito do Ecumenismo
O movimento ecumênico é muito amplo e muitos são os interesses que o podem mover: o de entendimento entre os povos; o de entendimento entre as Igrejas Cristãs; o de construir serviços juntos; o de dar um testemunho comum; o de possibilitar um âmbito de bom relacionamento e de solução para questões que dizem respeito comum; o de conseguir uma unidade de ação ou até uma unidade institucional; o de oferecer uma instância oficial de diálogo, de negociação, que promova cooperação e acordos; o de possibilitar uma ação conjunta na base em favor de um bem comum; o de promover um diálogo cultural entre os diversos povos onde o cristianismo esteja presente; o de promover a paz e a justiça em nome do cristianismo, etc. Todos estes motivos são bons e são motivos em nome dos quais se pode construir um diálogo ecumênico. Antes de se buscar um motivo ou âmbito de ação concreta onde o diálogo deve finalmente acontecer, deve-se pensar em sua sustentação teológica, isto é, naquilo que faz com que o diálogo ecumênico seja diferente de um diálogo entre partidos políticos ou sindicalistas e que tenha uma profundidade que vai além do interesse imediato das instituições e pessoas nele envolvidos. Dito de uma forma mais direta, faz-se necessário pensar a base de fé e a base teológica na qual o diálogo ecumênico possa ser ancorado com segurança e a partir da qual ele é sempre de novo impulsionado. Um diálogo ecumênico deve ter por motivação básica a própria fé, ou seja, a convicção de que a ação do diálogo com membros de outras Igrejas é um ato de fé. É em nome e por causa de sua fé que os cristãos devem buscar o diálogo. Esta fé é concretamente a fé em Jesus Cristo. A fé em Jesus Cristo - o ponto no qual todos os cristãos estão unidos - é a base comum onde há entendimento e a partir de onde deve ser buscado o diálogo. Ao dizermos que o diálogo ecumênico deve estar ancorado na fé em Jesus Cristo, estamos querendo apontar para o fato de o diálogo ecumênico não ser em primeiro lugar uma questão técnica, de diplomacia; um acréscimo forçado às coisas da fé. O motor de ecumenismo não é a questão técnica do como fazer o diálogo, mesmo reconhecendo que isto seja de extrema importância. O motor impulsionador da vontade ecumênica deve ser o por que fazer este diálogo: a espiritualidade, a atitude própria de quem crê e por causa da fé se coloca neste movimento de diálogo. É o Espírito do Senhor que inspira o diálogo, é ele a causa primeira. O próprio Concílio Vaticano II já reconhecia isto ao afirmar que “por obra do Espírito Santo, surgiu, entre nossos irmãos separados, um movimento sempre mais amplo para restaurar a unidade de todos os cristãos. Este movimento de unidade é chamado movimento ecumênico”[1]. O Concílio Vaticano II, ao afirmar que o movimento ecumênico é obra do Espírito Santo, o coloca para os cristãos em outro nível. Ir contra o movimento ecumênico não é mais então uma questão de gosto pessoal. Trata-se de não perceber a ação do Espírito e quiçá até impedi-la. O Espírito do Senhor não é apenas o originador do ecumenismo, mas também seu condutor, o seu possibilitador permanente. Aqui se pode aludir à máxima bíblica do salmista: “Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os seus construtores” (Sl 127,1). O desafio está aqui em se deixar guiar pelo Espírito Santo. A partir da ação do Espírito o diálogo que busca a unidade entre os cristãos, o Espírito que busca a reconciliação não é isolado. A reconciliação entre cristãos é também parte e tem sua fundação última na reconciliação entre Deus e o mundo, na reconciliação escatológica que não conhece mais divisões, onde Deus será tudo em todos; ou seja a perfeição divina preencherá tudo e não mais há espaço para divisões. Pensar e tratar de ecumenismo não é tão somente historiar passos de trajetórias divergentes e – especialmente – convergentes dentro da tradição cristã. É também apontar para as bases teológicas que alimentam os ideais pela busca de unidade e convivência entre cristãos. Este capítulo se propõe pois a apontar elementos do que se pode chamar de espírito ecumênico, isto é, qual o espírito cristão que permeia, alimenta e impulsiona a busca cristã comum.
3.1 O Deus uno e trino: Unidade e Comunidade A própria forma como os cristãos crêem em Deus é muito inspiradora para o espírito ecumênico: o Deus uno e trino. Deus é unidade perfeita em três pessoas[2]. A cada pessoa da Trindade é atribuído algo diferente da outra. Ao Pai a criação, ao Filho a salvação e ao Espírito Santo a santificação. Tendo suas propriedades, as pessoas da Santíssima Trindade são essencialmente unidade. Nesta compreensão de Deus há a unidade e há diversidade, sem contradição e sem que uma impeça a outra. Esta forma de compreender Deus pode ajudar a pensar, a partir da fé, o Ecumenismo: a conciliação de unidade e diversidade. Com isso não se está forçando uma compreensão estranha, nem usando indevidamente a compreensão teológica a respeito de Deus. É o próprio Jesus que a isto aponta ao dizer: “Que todos sejam um como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21) ou na outra passagem onde afirma: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). É esta unidade entre o Pai e o Filho que inspira a unidade entre cristãos. E mais que isto: a Teologia, ao pensar sobre a unidade da Trindade, perguntou-se sobre o que une as três pessoas num só Deus. O grande teólogo da Idade Média, Santo Tomás de Aquino diz que “há uma dupla unidade no Pai e no Filho, de essência e de amor e consonante as duas, o Pai está no Filho e o Filho no Pai”. E Leonardo Boff continua: “O amor é a forma mais alta de união. Ele faz com que as diferentes Pessoas sejam uma união de vida, de mútua entrega e de comunhão... Deus é amor e comunhão dos divinos Três. Deus é Três Únicos em comunhão de amor. Esta comunhão de amor faz que eles sejam um só Deus”[3]. Esta forma de compreensão de Deus, uma unidade da Trindade no amor, inspira os cristãos a buscar a unidade no ecumenismo: através dos laços do amor, isto é, da benquerença mútua, dos mesmos interesses, do mesmo sentimento. O amor é o princípio de unidade: em Deus, entre Deus e a criação, entre os seres humanos. Marcelo Barros afirma: “O sonho de Deus é a unidade, porque o próprio Deus se revelou como amor (princípio de unidade). Dando-nos a unidade, Ele se dá a nós. Como Pai e Mãe de ternura, Deus é comunhão. ‘Quem vive no amor vive com Deus, em Deus e Deus mora com ele ou ela’ (1Jo 4,16)”[4]. O acontecimento da unidade ecumênica com o amor é o Deus mesmo acontecendo na manifestação. Assim a unidade de Deus é mais que uma inspiração para o movimento de comunhão dos que creem no Cristo. Onde a unidade e a comunhão entre cristãos acontece, nem que em pequenos gestos e pequenas proporções, pode-se dizer, aí se pode ver a presença de Deus, aí se pode ver o ser Espírito tomando lugar em meio aos crentes, aí há não apenas unidade entre pessoas, mas das pessoas com o próprio Deus.
3.2 Inspirações Bíblicas para a Unidade Entender a unidade como sinal da manifestação de Deus faz parte da tradição de fé judaico-cristã, desde os pais e mães da fé, o povo de Israel. Quem nesta tradição conservou o testemunho do Deus da unidade de um modo todo especial foi a Bíblia. Como dar à Bíblia seu lugar importante no processo de busca por uma maior comunhão entre os cristãos? Aqui há de se considerar alguns elementos que causam dificuldades, como ressaltar outros que possam ser impulsionadores. A Bíblia tem sido um fator de divergência entre as diversas confissões cristãs. Não se pode fugir desta realidade ao pensar na Bíblia no contexto ecumênico. Esta divergência refere-se, sobretudo a dois aspectos: a interpretação e o número de livros ou textos considerados canônicos. A questão da divergência de interpretação é por um lado mais complexa, mas por outro mais fácil de contornar pelo fato de que mesmo dentro de uma mesma confissão há interpretações divergentes. A diferença de interpretação é, pois, geralmente aceita como conatural, muito embora exista uma certa predominância no estilo de interpretação em cada tradição eclesial. Um elemento nesta temática da interpretação causou historicamente uma grande dificuldade de relacionamento entre a tradição católica e as tradições nascidas da Reforma, que é a relação entre Sagrada Escritura e Tradição como elementos vinculantes para a interpretação da fé. A partir do Concílio de Trento a Igreja Católica Romana irá entender que a Tradição (através do magistério oficial), ao lado da Sagrada Escritura, é vinculante para a correta compreensão da fé. A tradição da Reforma entenderá que somente a Sagrada Escritura tem esta autoridade de fé (sola scriptura). Esta interpretação diversa sobre a fonte vinculante para a correta compreensão da fé foi elemento de divergência durante séculos nas relações destas igrejas envolvidas. Na década de 1960, entretanto, se tentou lado a lado uma interpretação que pudesse aproximar as posições. Assim, na conferência mundial do grupo Fé e Constituição (do CMI) de 1963 irá se fazer uma interessante distinção entre Tradição, tradição e tradições: “Entendemos por Tradição [com letra maiúscula] o próprio Evangelho, transmitido de geração a geração na Igreja e pela Igreja, estando o próprio Cristo presente na vida da Igreja. Entendemos por tradição [com letra minúscula], o processo da transmissão. O termo tradições, no plural, é usado em dois sentidos, e indica seja a diversidade de formas de expressão, seja o que nós chamamos de tradições confessionais”[5]. No âmbito da Igreja Católica, o documento do Vaticano II, Dei Verbum (9), irá afirmar: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão portanto entre si estreitamente unidas e comunicantes. Pois promanam ambas da mesma fonte divina, formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim”. Embora estas afirmações de lado a lado não sejam idênticas, elas aproximam os conceitos de Sagrada Escritura e Tradição, não mais a entendendo como elementos separados em si. Já a diferença de livros (textos considerados canônicos) é uma divergência mais difícil de ser contornada, especialmente a nível popular onde cada lado acusa o outro de ter uma Bíblia falsificada. Somente um esclarecimento sobre a origem das diferenças do cânon pode trazer clareza nesta divergência, pois os critérios pelos quais foram historicamente escolhidos os livros que fazem parte da lista canônica são anteriores à divisão eclesial e não estão com eles ligados. Apesar de se ter presente o fato de que a Bíblia é muitas vezes um fator de divergência entre os cristãos das diversas tradições, ela tem muitos elementos importantes para a questão ecumênica. O próprio livro já é de per si um valor todo especial para o ecumenismo. Vejamos alguns destes valores, antes de apontarmos para conteúdos bíblicos que possam ser importantes para a teologia e espiritualidade ecumênica: a) Bíblia: o próprio nome indica unidade e diversidade. A palavra bíblia é uma palavra plural: é proveniente do grego tá bíblia, que significa os livros. Ou seja, a pluralidade está já na constituição do próprio termo. E o termo plural é muito exato, pois a própria constituição da Bíblia é um trabalho de unidade de uma enorme diversidade: diversidade de textos, de gêneros literários (gênero histórico, sapiencial, profético, apocalíptico, devocional, epistolar, etc.), de tempos diferentes de composição, de mentalidades diferentes, de diferentes línguas (hebraico, aramaico e grego), de diferentes correntes religiosas e políticas, etc. b) A coleção de livros que compõe a Bíblia é, em sua grande maioria, um ponto de unidade para os cristãos e é por todos aceita como palavra de Deus[6]. Todos os cristãos dão à Bíblia um lugar essencial de autoridade em termos de fonte para a fé. c) Ligado à autoridade da Bíblia em termos de fé para todos os cristãos, está o fato de a Bíblia ser para todos os cristãos um livro inspirado, entendido como palavra de Deus para a humanidade. Mesmo havendo diversas chaves e tradições de leitura e interpretação da Bíblia, para todos ela é “A Bíblia”.
a) Antigo Testamento Não é, porém apenas a Bíblia “olhada de fora” (como livro, como conjunto ou como um todo) que é uma inspiração e um marco importante para o ecumenismo. Também de seu conteúdo se pode tirar inspirações que ajudam a caminhada ecumênica. Um destes pontos presentes em toda a Bíblia é a apresentação de Deus como o Deus da Aliança. Deus faz aliança com a humanidade (Noé), Deus faz aliança com um povo (o povo de Israel, no Sinai). As alianças feitas por Deus são para o bem, são para a salvação, para que aconteça a justiça. “Na Bíblia, se vê que a linha que percorre toda a revelação de Deus, no Antigo e no Novo Testamento, é o projeto que Deus tem: fazer uma aliança de amor com a humanidade. Por esta aliança, o mundo se torna um lugar de fraternidade, e a humanidade, um único povo, formado de diversos povos e culturas, mas reunidos no mesmo amor de irmãos”[7]. A própria fundação do povo de Israel é o resultado de uma aliança entre diversos grupos, diversos clãs, entre diversos povos, inclusive com concepções diferentes de Deus. Na origem de Israel estão tribos de hebreus. Os hebreus não eram necessariamente um único povo. O nome significa, segundo diversos estudiosos, “gente sem pátria”, “pessoas sem terra”. Tratava-se especialmente de três tipos de grupos. Um grupo vivia no país de Canaã e participava da vida dos cananeus. Tanto se colocando como seus empregados (trabalhadores volantes), como também participando de sua vida religiosa, cujo centro encontrava-se na cidade de Siquém, no alto da montanha, onde os cananeus cultuavam o Deus El Berith (o Deus das Alianças). Dentre estas tribos havia um outro grupo, das que tinham vivido nos entornos do deserto e outro grupo de pessoas que eram advindas do Egito, de onde haviam fugido da escravidão do Faraó. Estas pessoas advindas do Egito traziam consigo a fé num Deus que inspirara o líder Moisés – segundo a tradição – a organizar a fuga, num Deus que propiciara a libertação. Este culto não era, entretanto de origem egípcia, mas provavelmente madianita. As tribos originárias do entorno do deserto tinham em sua tradição a adoração de um Deus que era cultuado no Monte Sinai e que selara uma aliança com o povo prometendo a eles descendência, terra e liberdade. Algumas tribos que viviam no meio dos cananeus ou no entorno do deserto contavam de seu antepassado Abraão, a quem Deus tirara de sua terra e mandara vir para esta região, fazendo a ele a promessa de terra e descendência. Estes tipos diferentes de grupos uniram-se aos poucos para conseguir se estabelecer numa terra e com esta união foram formando um único povo, com o nome de Israel. A base de fé desta união de diversas origens é o Deus das alianças, que prometera em todas as tradições terra e liberdade (autonomia). O texto bíblico mostra que são diversos os nomes que se usa para o próprio Deus: nalgumas tradições fala-se em El Sebbaot (o Deus dos exércitos), noutras El Shaddai (o Deus dos lugares altos), noutras El Berith (o Deus das alianças), noutras ainda Elohim (o Deus dos Deuses). Os grupos advindos do deserto adoravam o Senhor (Adonai), cujo nome não se pronunciava (YHWH = Javé). Também as formas de se prestar culto eram bastante diversas. A Bíblia fala em formas de rituais como o sacrifício de animais e o derramamento de sangue em honra ao Deus; fala em oferendas de frutos da terra (frutas e cereais); fala no costume de se fazer um amontoado de pedras e se adorar a Deus; narra o costume de se cultuar a divindade no alto da montanha; fala de um outro costume de se cortar animais ao meio e se passar por entre os pedaços pronunciado juramentos (Gn 15,8-12). O livro bíblico dos Salmos é uma coletânea de orações que surge do contexto ritual. E ele ao recolher as orações do povo, é bastante inclusivo, pois há Salmos de origem cananeia (ex. Sl 19 e 29) e de origem egípcia (Sl 104). Nisto fica claro que inclusive na piedade deste povo (as orações) se conservava a diversidade da qual ele se originara. A formação do povo de Israel é - como foi descrito acima em poucas palavras - um grande processo de unificação, um processo verdadeiramente inter-religioso, no qual estavam presentes muitos elementos de origens diferentes, mas do qual resultou uma unidade. Nesta unidade muitos elementos foram incorporados e muitos outros foram rejeitados. Na Bíblia se pode ler passagens que deixam claro que elementos religiosos diversos foram integrados no processo de formação do povo. Assim a serpente de bronze – que era um símbolo de uma divindade cananeia – foi aceita como símbolo de Deus que cura (Nm 21); já o bezerro de ouro não foi aceito, mesmo tendo sido feito pelo próprio povo. Como o bezerro de ouro, muitos outros deuses de povos vizinhos também foram rejeitados, como Baal, Moloc, as divindades do Egito e da Babilônia. O critério para aceitação dos elementos parece ter sido a participação do respectivo povo (grupo e sua fé) no processo de se conseguir terra para se estabelecer. Hoje se tem talvez a impressão, ao se falar do povo de Israel do Antigo Testamento, que se tratava desde o início de uma unidade social e religiosa fechada e coesa. Na verdade esta unidade foi construída com o tempo, foi surgindo, sobretudo a partir fé que vai se tornando comum num Deus das promessas (terra e descendência) que com estas tribos fizera uma aliança.
b) Novo Testamento Para os cristãos que leem a Bíblia, a se pensar a dimensão ecumênica, o Novo Testamento é sem dúvida um maior sinal de unidade. É no Novo Testamento e principalmente em certas palavras de Jesus que o movimento ecumênico se apóia. Palavras como as de Jesus em Jo 10 (O bom Pastor), especialmente no versículo 16 “Possuo ainda outras ovelhas que não são deste aprisco. É preciso que as traga e elas ouvirão minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” ou da Oração da Unidade de Jo 17 (v. 22: “Dei-lhes a glória que tu me deste, a fim de que sejam um como nós somos um”). Além, porém destas palavras de Jesus pela unidade, é o próprio Jesus Cristo o centro e o motivo de unidade ecumênica. A fé em Jesus Cristo é o ponto que une todos os cristãos, das mais diversas Igrejas. Por causa de Jesus Cristo, todos os cristãos estão unidos, quer queiram ou não. E como Jesus Cristo é o centro da fé, pode-se dizer com toda a certeza: Todas as Igrejas formam em primeiro lugar uma Unidade. Aquilo que elas têm de mais importante para a fé, aquilo que é a razão de ser de sua existência é único e um só: Jesus Cristo. Diferentemente do Antigo Testamento, no qual, como visto, a partir da diversidade formou-se a unidade, no Novo Testamento é a partir da unidade (Jesus Cristo) que se formou a diversidade (as diversas Igrejas). Mesmo sendo o ponto de partida a unidade na pessoa de Jesus Cristo, os escritos mais antigos do Novo Testamento (as cartas de Paulo) já mostram que há uma preocupação grande com a questão da unidade na comunidade cristã. Um dos principais problemas da comunidade inicial que dificultava a unidade eram as diferenças entre cristãos de origem grega e cristãos de origem judaica. Outro problema de unidade enfrentado por Paulo é a divisão havida por causa da classe social à qual pertenciam os diversos cristãos. Havia tensões entre escravos, ex-escravos, pobres e senhores, sendo que todos eles eram cristãos e pertenciam à mesma comunidade. O lugar onde fica, porém mais claro o problema da unidade é na comunidade de Corinto. Paulo inicia a sua primeira carta à comunidade colocando o problema da divisão que há na comunidade (1Cor 1,10) e ao mesmo tempo já aponta para o cerne que está acima de qualquer divisão: “Porventura estaria Cristo dividido?” (1Cor 1,13). Nesta mesma carta, Paulo vai detalhar a partir do capítulo 12 como ele vê a questão da unidade e da diversidade. O ponto de vista de Paulo é o seguinte: tanto a unidade quanto a diversidade têm lugar e ambas são originárias de Deus. O que une a todos é a mesma fé; onde há diversidade, é o Espírito de Deus que a proporciona. Algumas afirmações de Paulo que deixam perceber sua posição em favor da unidade e da diversidade: “Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito” (1Cor 12,4); “Porque, assim como o corpo, sendo um só, tem muitos membros e todos os membros do corpo, sendo muitos, são um só corpo, assim também é Cristo. Pois num só Espírito todos nós fomos batizados para sermos um só corpo e todos, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres, bebemos do mesmo Espírito. Porque o corpo não é um só membro, mas muitos” (1Cor 12,12-14); “Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um como parte é membro” (1Cor 12,27). O capítulo 13 da 1Cor é o chamado “hino ao amor (à caridade)”, onde Paulo coloca a virtude que deve estar acima de tudo, que deve ser o elo a unir a diversidade. Como exposto anteriormente, ao se abordar a união do Deus trino, que é o amor que dá, segundo a interpretação de muitos teólogos, a unidade das três pessoas, assim também Paulo coloca o amor como o elo a unir a comunidade. No capítulo 14 Paulo conclui a questão da diversidade, afirmando que a diversidade (línguas, profecias) deve ser colocada em favor do bem comum e conclui dizendo: “Porquanto Deus não é Deus da confusão, mas da paz” (1Cor 14,33). Júlio H. de Santa Ana[8] faz uma interessante divisão em quatro tipos de problemas de unidade que Paulo encontra e enfrenta: a) a questão da dificuldade de convivência entre aqueles cristãos que entendem ser esta uma proposta para judeus e que não fosse judeu teria que se tornar judeu para aderir ao cristianismo (os chamados judaizantes) e os que entendiam ser o cristianismo uma forma de vida que prescindia do judaísmo (ideia defendida por Paulo); b) as tensões advindas dos personalismos e tensões de convivência (especialmente sociais), levando à formação na comunidade de Corinto, por exemplo, à formação de verdadeiros grupos partidários (“eu sou de Paulo, eu sou de Apolo”), ou então na mesma comunidade os problemas havidos nas ceias, onde alguns mais abonados não queriam participar das refeições com menos abonados (1Cor 11,22, por exemplo); c) o terceiro tipo de problema de unidade advém da sociedade do entorno e sua divisão social entre escravos e livres. O império romano dividia assim seus habitantes e no caso de Onésimo, escravo de Filêmon isto aparece. E Paulo vai recomendar a este que acolha Onésimo agora cristão “já não mais como escravo, mas bem mais do que escravo, como irmão caríssimo meu e sobretudo teu, seja como pessoa, seja como irmão no Senhor” (Fm 16); d) E por último, o esforço de Paulo em congregar na unidade da fé as diferenças concretas. Que estas não sejam motivo de divisão, pois acima de tudo está algo que unifica: “Esforçai-vos para conservar a unidade do espírito pelo vínculo da paz. Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados por vossa vocação, para uma só esperança. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, que age por meio de todos e em todos” (Ef 4,3-6). Se as cartas de Paulo deixam claro em diversas passagens as dificuldades com a unidade na comunidade, no texto do Evangelho vai se mostrar um elemento dificultador de outro nível: a ambição pessoal. “Chegaram a Cafarnaum. Em casa, Jesus lhe perguntou: ‘O que era que discutíeis pelo caminho?’ Eles se calaram, porque no caminho tinham discutido quem seria o maior. Então Jesus sentou-se, chamou os Doze e lhes disse: ‘Se alguém quer ser o primeiro, seja o último e o servo de todos’” (Mc 9,33-35). Este texto ocorre nos três sinóticos, mostrando que a dificuldade de convivência entre os discípulos por divergências pessoais remonta ao próprio grupo dos apóstolos.
3.3 Teologia Ecumênica: convivência cristã e fé cristã O surgimento da questão ecumênica na caminhada cristã e eclesial, a partir sobretudo do final do século XIX, coloca a pergunta por uma teologia que possa acolher e refletir o assunto. Ou dito em outras palavras: como ancorar esta temática da convivência cristã na própria compreensão de fé cristã. A pergunta ou questão que o ecumenismo levanta precisa ser vista a partir da fé. Isto para que – como já afirmado diversas vezes – o ecumenismo não ser visto como uma questão técnica, de negociação ou de acordos entre instituições cristãs, mas como algo que diga respeito à própria fé. Este é, pois, um primeiro elemento a ser destacado quando se pensa em teologia ecumênica: o ecumenismo está intrinsecamente ligado à compreensão de fé cristã. Ele precisa nascer da fé e ser uma expressão de vivência da fé. E isto, num âmbito maior, a sua ligação com a mensagem de Jesus Cristo, da lei “o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo” como essência identitária cristã: “Todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Num segundo momento é preciso se perguntar então quais consequências a consciência ecumênica traz para a teologia cristã. Há aqui três aspectos que merecem ser levados em consideração para se pensar uma teologia ecumênica. Estes elementos já foram, de certa forma, considerados anteriormente neste texto, mas talvez não nesta perspectiva. O primeiro aspecto diz respeito à pergunta pela questão fundamental do ecumenismo: o que faz surgir o ecumenismo? É a pergunta pelo discipulado. É a partir da consciência sobre as implicâncias que existem para alguém ou alguma instituição se considerar no seguimento de Jesus Cristo que nasce o problema ecumênico: a forma como aqueles e aquelas (pessoas e instituições) que se entendem como seguidores de Jesus estão convivendo com outros cristãos, que igualmente se entendem como seguidores de Jesus. O primeiro aspecto diz, pois respeito claramente ao “a partir de onde” nasce a identidade discipular cristã. Interessante aqui é voltar no próprio tempo e perceber que o discipulado e a eclesialidade nascem daqueles e daquelas que se consideram “testemunhas do ressuscitado” e pretendem viver a partir de seus ensinamentos. Tanto o cristianismo como organização, bem como o cristianismo considerado individualmente (a identidade de fé cristã pessoal), encontram sua razão de ser no seguimento de Jesus, no discipulado. O cristianismo e a fé de cada cristão perdem a razão de ser se não estiverem umbilicalmente ligados à vivência da mensagem de Jesus Cristo. Dali elas retiram constantemente na história a sua fundamentação. Uma teologia ecumênica retoma, pois este princípio básico: ser cristão é fundamentalmente seguir Jesus Cristo. É no discipulado que se fundamenta o ser cristão. E o que leva ao ecumenismo é primeiramente a pergunta pelo discipulado e não a pergunta pela pertença a alguma tradição eclesial. Se o cristianismo nasce historicamente por conta do discipulado, ele vai se manter e organizar na história de formas diversas, acumulando compreensões e experiências localizadas no tempo e no espaço. Este é um segundo aspecto da teologia ecumênica: ela não pode olvidar esta realidade histórica do cristianismo. O cristianismo construir historicamente maneiras diversas tanto de vivência (costumes), como de reflexão sobre esta vivência cristã (teologia). Esta realidade atual de diversidade cristã é outro elemento importante para uma teologia ecumênica. A diversidade teológica e sobretudo eclesial não pode ser tomada como um empecilho, mas sim como um ponto de partida da teologia ecumênica. Acolher e se mover nesta multiplicidade deve ser o cotidiano da reflexão ecumênica e não uma situação de exceção. E isto permanentemente. Ou seja, a pluralidade teológica é algo a ser apreciado como estrutural e não periférico. Com isto se está dizendo indiretamente que a teologia ecumênica acontece no intercâmbio da diversidade, na inter-teologia. Não se pode reduzir a um tratado ou disciplina dentro da teologia, para onde se deslocariam todas as questões de diferenças de pensamento que há nas tradições de reflexão cristã. E onde então se olhará estas diferenças a partir do ponto de vista ecumênico. Isto levaria à criação de uma Teologia do Ecumenismo. Esta seria já um avanço importante. Mas para além disso, o que se quer apontar aqui é a necessidade de uma teologia ecumênica, isto é, uma reflexão que se faça em todos os campos da teologia a partir do acolhimento da diversidade: sem aniquilar as identidades próprias da reflexão das diversas tradições, mas acolhendo a riqueza que pode significar e significa deixar-se fecundar pelo modo de pensar de outras tradições. E este é o terceiro aspecto aqui para o qual se quer chamar a atenção. Nesta linha, algumas áreas da teologia poder ser profundamente atingidas. Um exemplo claro é a eclesiologia, da qual já se falou: a necessidade de se falar em eclesiologias (no plural); toda a área de estudos bíblicos tem também uma riqueza de tradições a ser aqui levada em consideração. Dentro das diversas tradições eclesiais se formaram também tradições celebrativas diversas (diversidade litúrgica), bem como diferenças no que tange à organização e à compreensão sacramental. Esta é uma outra área onde a teologia ecumênica se move e aparece o seu lugar específico. E isto inclusive de um modo muito especial, pois a prática e compreensão sacramental diversa dentro do cristianismo vai se encontrar não apenas na reflexão, mas na vida pastoral concreta onde fieis de diversas tradições podem participar em comum de sacramentos ou rituais (exemplos típicos são as questões do matrimônio, do batismo, da ceia eucarística...). Um dos campos onde talvez a reflexão ecumênica encontrou diversas resistências, mas também se pode apontar algum avanço é na ideia de verdade religiosa definida pelas diferentes tradições cristãs. Nalgumas isto é feito mais na linha da definição dogmática – como é o caso da tradição cristã católico-romana – noutras se trata mais de diretivas de bases como fonte de fé – como o caso das Escrituras para a tradição luterana – ou ainda noutras há uma declaração de artigos de fé, a partir da qual a respectiva tradição se fundamenta na compreensão de verdade de fé – como é o caso das tradições anglicanas e metodistas. Com maior ou menor grau, há nisto uma certa compreensão de definição de verdade ou pelo menos de critério para a verdade. E estas definições ou critérios são muito caros para a respectiva tradição e sua identidade eclesial. Neste particular, a partir do Concílio Vaticano II ganhou cidadania na teologia ecumênica uma expressão importante: a hierarquia de verdades. O texto conciliar sobre o ecumenismo afirma que “comparando as doutrinas, lembrem-se que existe uma ordem ou ‘hierarquia’ de verdades na doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diverso” (UR 11). Esta compreensão teológica católica, que foi também acolhida e debatida em conjunto com o Conselho Mundial de Igrejas em 1990, coloca uma interessante possibilidade de reflexão no contexto ecumênico naquilo que diz respeito à compreensão de verdade. Não se trata de dizer que há verdades mais verdadeiras e verdades menos verdadeiras, mas sim de fazer uma hierarquia delas a partir de sua ligação com o fundamento da fé cristã. Com isto à teologia ecumênica é dada por um lado possibilidade de refletir sobre aquilo que fundamenta a fé cristã e, por outro, de perceber que muitas interpretações de verdade estão ligados mais à tradição ou à forma de organização de determinada comunidade eclesial. Não que isto crie uma lista conjunta de verdades mais ligadas ao fundamento da fé e verdades menos ligadas ao fundamento da fé cristã. Como afirma T. Stransky, “a natureza orgânica da fé afirma que as verdades reveladas não estão colocadas lado a lado numa lista estática de proposições, mas são organizadas ao redor, e apontam para um centro ou fundamento – a pessoa e mistério de Jesus Cristo, nossa salvação. Embora igualmente verdadeiras, as afirmações de fé têm maior ou menor consequência na medida em que se relacionam com seu fundamento”[9]. O conceito de hierarquia de verdade desafia inclusive, no contexto ecumênico, que cada tradição cristã se coloque a pergunta pelos seus elementos centrais de fé. Acima do esforço de reflexão teológica em torno do ecumenismo, um outro esforço sempre se sobrepôs e aqui é importante destacar: a prática de incentivo ao ecumenismo através da espiritualidade. Esta se mostra sempre de novo pela organização da Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos. Esta é já parte integrante da tradição ecumênica e quer expressão que a comunhão e convivência se deve dar em primeiro lugar por um espírito de fé. E esta tem sua expressão que toca o coração dos cristãos pela oração, dado que advém do próprio Cristo que ensina seus discípulos a rezar. E esta tradição marcou o cristianismo na sua constituição histórica. “A oração comum foi uma prática constante nas comunidades cristãs primitivas. No fato de orarem juntos, por coisas que têm a ver com a vida diária dos que formam a comunidade, não apenas se participa da prece a Deus, mas também se expõe a situação que motiva a elevação desta súplica [...] A prática da oração comum alcança seu verdadeiro sentido quando há uma vida compartilhada”.[10] A este costume e tradição da oração em comum desde o cristianismo primitivo é que o movimento ecumênico quer se ligar e ser expressão atual quando propõe que a oração (a espiritualidade) seja o seu principal impulsionador. Nesta tradição, em praticamente todos os países e línguas onde o cristianismo de faz presente em diversidade confessional, realizou o esforço por conseguir uma tradução comum, especialmente de orações fundamentais como o Pai-nosso ou o Credo. Ou então, no surgimento de orações atuais que possam servir de base para a prece comum. A título de exemplo nesta linha, se pode tomar o Credo na forma de sonho composto por Marcelo Barros.
Este sonho acontecerá Creio em Deus, fonte de vida e energia amorosa do universo, presença amiga e acolhedora de todas as culturas e religiões da terra. Creio que à assembleia de Israel, nossos pais na fé, Deus se revelou Mãe de ternura e fez com o povo uma aliança de libertação. Creio que, para ampliar esta aliança a todos os povos e aperfeiçoá-la no amor, Deus nos revelou que Jesus de Nazaré é o seu Filho amado. Jesus nos deu o seu Espírito, energia feminina de graça. Por isso, podemos chamar a Deus de Papai e contemplá-lo como Mamãe. Creio que Deus quer e vai realizar no mundo a sua paz, como sinal da sua presença. Este sonho de Deus é vivido em antecipação na comunhão das Igrejas abertas a todas as raças e culturas da terra. Creio que as divisões das Igrejas vêm dos nossos pecados. Assim como um dia começaram, podem um dia ser vencidas e superadas. Creio na unidade visível, total e orgânica, vivida na igualdade de todos e no respeito à diversidade. Que todas as Igrejas possam escancarar suas portas, que a humanidade peregrina possa nelas entrar e ser bem acolhida. Que todas as culturas venham nelas beber e cantar. Então, se formará o bloco do povo embriagado de Deus, dando força ao jeito próprio de cada tribo e religião expressar seu amor e festejar a festa, que é a alegria de minha vida e que em minha pobre fé eu só sei chamar de Páscoa.
Marcelo Barros O Sonho da Paz, p. 211-212
Pai-nosso - Texto ecumênico
Pai-nosso, que estás nos céus. Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dá hoje. Perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal, pois teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém
Credo apostólico - Texto ecumênico
Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos; creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Universal, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo, na vida eterna. Amém.
[1] Unitatis Redintegratio (UR), 1. [2] Esta fórmula da Trindade não é aceita por todas as denominações cristãs, mas por sua grande maioria. [3] L. Boff, A Trindade e a Sociedade, p.182. [4] M. Barros, O sonho da Paz, p. 21-22. [5] Aqui citado por: VERCRUYSSE, Jos. Introdução à Teologia Ecumênica, p. 135-136. [6] As Igrejas nascidas da Reforma não consideram como parte integrante da Bíblia os livros chamados “deuterocanônicos”: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus e parte do Livro de Daniel (3,24-90 e cap. 13 e14). [7] M. Barros, O sonho da Paz, p. 41. [8] SANTA ANA, Julio H. Ecumenismo e Libertação, p. 183-202. [9] STRANSKY, T. em Dicionário do Movimento Ecumênico, p. 580. [10] SANTA ANA, Julio H. Ecumenismo e Libertação, p. 179. |