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Volney Berkenbrock
Teologia ecumênica - Capítulo 2 PDF Imprimir E-mail

 

 

Capítulo 2 – Divisões e Unidade na história cristã

 

Este capítulo tem por objetivo fornecer uma visão panorâmica de duas histórias dentro cristianismo institucional: por um lado uma história de tensões e desentendimentos que levou a rupturas entre Igrejas, criando como consequência novas instituições eclesiais. Por outro lado, mostrar também que há uma história de tensões e desentendimentos que não levou a rupturas. Se a história das rupturas é mais notória e conhecida, a história do esforço exitoso por manter a unidade é menos notória e menos conhecida. Mas ela faz parte da mesma tradição cristã e não pode ser deixada de lado, mesmo para poder se apresentar como uma história que serve de exemplo a ações em meio às tensões.

 

2.1 Breve histórico das divisões institucionais dentro do Cristianismo

 

Neste tópico, veremos um panorama de como surgiram as muitas confissões cristãs, que com o tempo abrigam identidades e tradições eclesiais. A existência de diversidade de confissões cristãs não é de per si uma realidade negativa, pelo contrário, é um fenômeno a ser visto como rico e positivo. Mas esta realidade é um empecilho no diálogo ecumênico.

Na origem das diversas igrejas estão diversos motivos, que podem ser caracterizados como combinação dos seguintes fatores: divergências por causas teológicas (de interpretação da doutrina); divergências políticas (tanto de política dos estados como de política eclesial); divergências organizacionais (na forma de compreender os diversos papéis seja de liderança, seja de estrutura da própria organização); divergências culturais (tanto de grandes diferenças como entre Oriente e Ocidente, como divergências culturais de âmbito menor, que podem ser considerados como de costumes ou de moral) e divergências pessoais (especialmente nas inúmeras divisões dentro do pentecostalismo, que levam à fundação de um sem-número de novas Igrejas). Dificilmente foi um só destes fatores o causador de uma divisão institucional. Geralmente se trata da combinação de mais de um deles. Ao longo da história de uma nova tradição eclesial, tende-se a acentuar como mais importante e decisiva a diferença teológica (ou de interpretação de doutrina), por se entender ser esta mais importante na composição da identidade de cada tradição eclesial, mesmo que no momento da tensão e do surgimento de uma nova instituição este motivo não tenha sido tão decisivo.

Ao lançarmos os olhos sobre as divisões no seio do cristianismo, não podemos deixar de observar que o próprio cristianismo nasceu de uma divisão, ou pelo menos de uma ruptura, um cisma no seio do judaísmo. Um grupo de judeus reconheceu em Jesus Cristo o Messias (o Cristo) e o seguimento do Messias e seus ensinamentos levaram à expulsão da sinagoga e ao surgimento de uma religião própria que não mais a judaica.

Esta nova tradição religiosa (o cristianismo) não nasce do ponto de vista institucional, de forma unitária. Imaginar o início do cristianismo como um momento em que em sua organização ele fosse institucionalmente unitário e que a existência de diversas tradições eclesiais tenha sido um processo posterior – como que maculando a realidade fundante – é um desconhecimento da história. Desde o início existem as diversas tradições eclesiais dentro do cristianismo: a tradição das comunidades fundadas por Paulo, as fundadas por João, as de tradição petrina, os judaizantes, etc. E mesmo dentro das diversas tradições, há já bastante cedo, problemas com a unidade. De Paulo de Tarso temos notícias (por suas cartas) das tensões internas nas Igrejas primitivas. Logo no início da Primeira Carta aos Coríntios (1,10-13), Paulo chama a atenção da comunidade para que se superem as divisões. Na Carta aos Gálatas, Paulo já mostra-se muito severo, ao condenar as pessoas que pregam “falsas doutrinas”: “Se alguém vos pregar outro evangelho diferente do que recebestes, seja anátema” (Gl 1,9) e em Gl 2,4 ele fala de “falsos irmãos, intrusos”.

Estas divisões no início do cristianismo não provocaram, porém divisões no sentido de cismas da instituição Igreja, mesmo porque ela não se entendia ainda como uma organização com uma unidade institucional definida. O cristianismo inicial conhece um processo relativamente longo de formação de uma consciência eclesial institucional. Inicialmente é muito mais um grupo de fé que se reúne (daí justamente o nome, ecclesia, assembleia ou reunião). E como assembleia, é muito mais acontecimento que instituição. Nos escritos do Novo Testamento, que testemunham este processo inicial, Igreja é geralmente a comunidade local. E como tal, há então muitas Igrejas, sem qualquer preocupação de uma instituição unificada. Aos poucos começam a aparecer preocupações por elementos que sejam em comum (unificados), mas ainda não se trata de unificação institucional.

Com a chamada virada constantiniana e os concílios dogmáticos da antiguidade (Niceia: 325; Constantinopla: 381; Éfeso: 431 e Calcedônia: 451) surge uma consciência maior da necessidade de uma unidade institucional e doutrinal. Há longas e interessantes discussões sobre se esta unidade institucional não era muito mais uma necessidade do império romano enfraquecido, que da comunidade cristã. Mas fato é que ali, especialmente no primeiro concílio da antiguidade (Niceia) apareceu claramente a preocupação pela unificação institucional, o que não significa unificação no sentido jurídico do termo. A unificação ali buscada era muito mais de interpretação comum de elementos importantes e sobre os quais havia divergências. Os concílios que se seguem, continuam nesta consciência da busca de unificação. E justamente em torno desta unidade buscada nos concílios é que surgem o que se poderia chamar de cismas no seio do Cristianismo. Cismas aqui não tão como cisões, pois não se trata de divisão a partir de uma unidade, mas cismas no sentido de não acompanhamento ou aceitação da interpretação comum (padronizada) dos concílios sobre algumas questões.

A seguir se lista e se comenta rapidamente uma série de cismas ocorridos na história do Cristianismo eclesial. Esta lista não é exaustiva. Aqui são colocados os casos mais conhecidos e a título de exemplo para se formar rapidamente uma visão panorâmica das ramificações institucionais.

a) A Igreja persa/caldeia. O primeiro cisma institucional claro dentro do cristianismo surge por questões explicitamente políticas. O cristianismo havia se difundido para o oriente para dentro do império persa. Este era o inimigo do império romano ao oriente. No contexto de guerra entre os dois impérios, os cristãos sob os persas passaram a ser acusados de serem secretamente aliados dos romanos. Para fugir desta acusação, os cristãos reuniram-se no ano de 410 no Sínodo de Selêucia e ali decidiram adotar uma organização autônoma em relação ao patriarcado de Antioquia, ao qual estavam ligados. Esta separação foi confirmada novamente no sínodo de 424. Não se discutiram divergências teológicas. A separação foi claramente uma solução para a questão política. Não houve, na verdade nenhum rompimento formal, mas a criação de uma instituição autônoma de fato. Este cristianismo persa foi dotado de um notável vigor missionário e se expandiu ao oriente pela Índia e China. O ponto máximo de sua expansão ocorreu no século XII, quando contava com cerca de 50 milhões de cristãos. Começou aí, porém a decadência sobretudo pelas invasões de grupos islamizados. Sobraram poucas comunidades que no início do século XXI contavam com não mais de 200 mil fiéis vivendo no Irã, Iraque e Índia (cristãos de São Tomé).

Neste primeiro momento de divisão organizacional dentro do cristianismo (embora ele ainda não tivesse uma consciência sobre uma unidade institucional), o motivo básico é político e inclusive externo ao próprio cristianismo.

b) O cisma das Igrejas monofisitas. Na fórmula aprovada pelo Concílio de Calcedônia ficava reconhecida e declarada a união de duas naturezas em Jesus Cristo (“Confessamos um único e idêntico Cristo, Filho e Senhor unigênito, que deve ser reconhecido em duas naturezas, sem confusão e sem mudança; sem divisão e sem separação...”). Algumas Igrejas orientais presentes no Concílio não aceitaram esta fórmula, afirmando subsistir em Jesus Cristo apenas uma natureza. Estes, chamados monofisitas (mono = uma; fisis = natureza), foram condenados pelo concílio. As Igrejas dirigidas por bispos monofisitas persistiram. Tiveram inclusive uma expansão missionária no leste africano – sobretudo Etiópia. Embora permanecendo bastante isoladas do resto do cristianismo (mesmo porque dois séculos mais tarde seus territórios foram quase que totalmente islamizados), até hoje elas ainda existem: a Igreja Apostólica Armênia; a Igreja Síria Ortodoxa; a Igreja Copta Ortodoxa e a Igreja Ortodoxa da Etiópia. Estas Igrejas nunca aceitaram o rótulo de monofisitas e se autodenominam ortodoxas orientais. Hoje não estão apenas restritas a estes países. Através da imigração estão também presentes em outras regiões do mundo, somando cerca de 22 milhões de fiéis.

Estes dois primeiros cismas aqui apresentados (Igreja da Caldeia e Igrejas monofisistas) acontecem, no entanto, em uma época onde a consciência da existência de uma unidade institucional ainda não está plenamente formada. Dever-se-ia talvez mais propriamente falar em surgimento ou consolidação de uma instituição em determinada direção que propriamente em um cisma. As divisões que iremos apresentar em seguida ocorreram, no entanto, dentro de um contexto de consciência de unidade institucional e são, assim, muito mais marcadas pela ideia de ruptura, em comparação com as anteriores.

Na divisão ocorrida pela questão monofisita, já aparece muito clara a diversidade de interpretação teológica. Há motivações advindas de diferenças culturais, mas a questão central é em princípio teológica.

c) O cisma entre as Igrejas do Oriente (Igrejas Ortodoxas) e do Ocidente (Igreja Católica Romana). Este foi o primeiro grande cisma institucional na Igreja, ocorrido oficialmente no século XI. Há, porém uma longa história que levou a este cisma. Esta história comporta aspectos culturais, doutrinais e especialmente políticos. Apenas alguns passos mais importantes desta longa história. Constantino, imperador que se convertera ao Cristianismo, resolve no final de sua vida transferir a capital do Império Romano de Roma para a cidade de Bizâncio, renomeando a cidade em Constantinópolis (cidade de Constantino, a atual Constantinopla, na Turquia). Com a conversão de Constantino inaugura-se também uma nova forma de relação entre Igreja e Estado, o chamado césaro-papismo, ou seja, a intervenção do imperador nas questões eclesiásticas. Roma era a principal sede da Igreja e continua sendo mesmo após a transferência da capital do império. Como patriarcado da agora capital do império, a sede episcopal de Constantinopla ganha uma maior importância. Motivado, sobretudo por questões políticas, começa a se acentuar a rivalidade entre Roma e Constantinopla. Entre os anos de 484 e 518 chega-se inclusive a uma separação, com ex-comunhões mútuas entre o Papa Félix II e o Patriarca Acácio. Após 34 anos houve, porém a reunificação, mas não uma reconciliação plena de ressentimentos. A tensão continuou. Esta tensão é bastante clara no Segundo Concílio de Constantinopla (553), quando o Papa Virgílio (de Roma) desautoriza o imperador Justiniano em sua pretensão de jurisdição sobre questões doutrinais. O Concílio se reúne e aprova proposições defendidas pelo imperador. O imperador desterrou o Papa (que não só não participou do Concílio, como foi pelo Concílio excomungado) e só o anistiou quando este reconheceu a legitimidade do Concílio. As Igrejas Ocidentais tomam cada vez mais Roma como referência, enquanto as Orientais voltam-se acentuadamente para Constantinopla. As desconfianças de ambos os lados só aumentam com as controvérsias políticas[1]. Com isso surgem costumes eclesiásticos diferenciados, sobretudo no que diz respeito à liturgia. Neste aspecto aparecem especialmente as diferenças culturais entre o Ocidente e o Oriente. Em termos doutrinais há uma questão que se arrasta por séculos: a chamada questão do filioque. O Credo Niceno-Constantinopolitano proclamava sobre o Espírito Santo: “Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida e procede do Pai, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”. Porém já no século VI se rezava na Igreja latina: “Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida e procede do Pai e do Filho”, acrescentando-se assim o “e do Filho” (em latim: Filioque). Este costume começou provavelmente na Espanha. Devido à rivalidade entre Roma e Constantinopla, a versão do Credo com o filioque é utilizada no ocidente, o que a Igreja do oriente não aceita. Não aceita por duas razões: esta inclusão modifica o credo aprovado por um concílio e só um concílio, portanto, teria a autoridade de modificar a fórmula do Credo; segundo por um motivo de interpretação teológica. Enquanto no Ocidente se acentuava a igualdade de substância entre o Pai e o Filho, dado que o Oriente acentua a diferença entre as pessoas. Para os Orientais, o Filioque era teologicamente problemático, por tender a perder de vista a diversidade entre as pessoas da Trindade. No passar dos séculos, a tensão entre Roma e Constantinopla por ora se acentuava mais, por ora havia maior unidade. A crise maior veio no século XI, quando as Igrejas do Oriente publicaram documentos, criticando duramente os costumes litúrgicos do Ocidente. O Papa Leão IX (1049-1054) reagiu enviando uma delegação a Constantinopla para pedir explicações. À frente da delegação estava um o cardeal Humberto, um homem de pouca aptidão diplomática. No dia 16 de julho de 1054, o Cardeal Humberto coloca no altar da Igreja de Santa Sofia uma bula contendo a excomunhão do Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário. Este gesto não fora feito em nome do Papa Leão IX, que entrementes havia falecido. A rigor, este fato ocorre enquanto a sede romana está vacante, dado que o novo Papa só será eleito no ano seguinte. O Imperador Constantino IX manda queimar a bula e Humberto e seus companheiros são excomungados por Constantinopla. Estava marcada a ruptura oficial. Formaram-se a partir dali duas tradições institucionais distintas: as Igrejas do oriente por um lado e a Igreja do ocidente por outro. As Igrejas do oriente irão se chamar “Igreja Ortodoxa, Católica e Apostólica do Oriente”, enquanto a do ocidente será chamada de “Igreja Católica Apostólica Romana”. Enquanto esta tem uma sede única, em Roma, as do oriente são constituídas por uma série Igrejas autônomas, cujo órgão supremo é o sínodo episcopal pan-ortodoxo, no qual o Patriarca de Constantinopla exerce o primado de honra. Esta ruptura, que parecia ser passageira, perdura até os nossos dias e foi agravada por outros fatos históricos, como o que aconteceu durante a quarta Cruzada (1203-1204) quando os latinos e ocidentais conquistaram e saquearam Bizâncio por duas vezes, cometendo toda espécie de barbáries. Quando da ruptura oficial, também já se havia desenvolvido no Oriente e no Ocidente, modelos diferentes de Igreja. Enquanto no Oriente não havia uma centralização rígida, mas uma distribuição de poder maior para os diversos metropolitas, a Igreja Ocidental centrava-se mais na figura do Papa. Enfim, foram muitos os fatores que contribuíram para que a ruptura de 1054 fosse cada vez mais solidificada. Mesmo sendo a ruptura uma realidade que se implantou, não se pode deixar de nomear aqui esforços feitos pela unificação. Dois são aqui dignos de nota: o Concílio de Basileia/Ferrara/Florença (1431-1445), no qual se chegou a uma forma de reunificação (que não perdurou) e o Concílio Vaticano II, no qual foi feita uma declaração conjunta da Igreja Católica Romana e do patriarcado de Constantinopla, no qual se revogou a excomunhão mútua proferida em 1054, e explicando que aquela excomunhão fora feita somente em relação às pessoas envolvidas e não às respectivas Igrejas.

O cisma entre Oriente e Ocidente foi um processo longo, onde muitas motivações tiveram um papel importante. O envolvimento da Igreja com o Império Romano faz com que as vicissitudes políticas tenham também atingido fortemente a instituição eclesial, fazendo da motivação política o principal impulsionador do cisma. Mas como envolvia as mais altas personalidades lado a lado (do império e da Igreja), há fatores pessoais que tiveram um papel não menos decisivo ao longo do tempo, onde figuras conseguiram impulsionar unidade e outras não tiveram a capacidade de reconciliar. Ao mesmo tempo, o decorrer da história cristã em territórios culturalmente tão diversos, proporcionou compreensões culturais cristãs (de costumes) diversas, no que resultou inclusive uma compreensão organizacional diferente. Enquanto no Ocidente, por exemplo, há uma centralidade na Igreja de Roma, no Oriente há diversidade de sedes eclesiais. Quando das discussões acaloradas que levaram ao cisma eclodiram, interpretações teológicas diferentes vieram à baila. Não foram, entretanto, tão decisivas ao longo desta história que levou à divisão. Pós divisão, estas receberam sem dúvida uma peso maior.

d) Lutero e a Reforma do séc. XVI. No dia 31 de outubro de 1517 o monge agostiniano Martinho Lutero prega suas 95 teses no portal da catedral do castelo de Wittenberg sobre a questão da venda de indulgências. Lutero com certeza não imaginava que seu ato iria influenciar toda a história da Igreja ocidental subsequente. A partir de seu gesto, iniciou-se todo um processo de discussão teológica, onde as posições foram de lado a lado sendo acirradas, e Lutero cada vez mais toma posições que se distanciam da teologia da Igreja de Roma, e esta – por sua vez tudo faz para apresentar-se em distância a Lutero. Esta situação não é por último, como sói acontecer em tais ocasiões, acompanhada de interesses políticos. Este processo de acirramento e polarização entre Roma e Lutero culmina em 1520, com a bula Exsurge Domine, onde há a ruptura entre as autoridades da Igreja Católica e Lutero e seu grupo. Com esta ruptura fica caracterizada mais uma grande divisão no seio do Cristianismo, que - como a divisão Oriente / Ocidente - perdura até hoje e com muitas consequências. A proximidade geográfica entre as duas facções e os interesses políticos de ambos os lados, faz com esta ruptura tenha tido consequências dolorosas para os cristãos.

Este cisma na Igreja do Ocidente não pode ser visto, porém como o resultado de uma briga entre Lutero e a Igreja de Roma. Todo o contexto – sobretudo de interesses políticos e econômicos – contribuiu essencialmente para o rompimento.

Vejamos rapidamente alguns elementos importantes deste contexto:       

Acúmulo de terras e poder pela Igreja: Com o passar dos séculos, a Igreja havia acumulado em suas mãos muitas terras. Muitos bispos são ao mesmo tempo príncipes, exercendo uma dupla função (política e eclesiástica). Este grande acúmulo de terras nas mãos da Igreja, vai gerar por outro lado uma imensa massa de população desprovida da posse de terras. Podemos imaginar quão grande é o potencial de tensões que esta realidade gera;

Início da burguesia: Desde o século XII havia sido iniciado uma revolução (silenciosa inicialmente) que irá deslocar mais tarde totalmente as forças dentro da Europa. Trata-se do surgimento da classe chamada de burgueses, uma classe que vai conseguir através, sobretudo da produção e do comércio a sua independência econômico-financeira em relação ao sistema feudal e seu sistema de bens baseado, sobretudo em propriedade territorial. Tendo consolidado a independência financeira, os burgueses vão dar início ao longo (e vitorioso) processo de independência política frente ao sistema feudal. Esta ascensão dos burgueses vai gerar muitas lutas internas na Europa;

Papado dependente da nobreza e após reforma cluniacense papado muito poderoso (séc. XII e XIII): A própria forma de organização do papel do Papa vai ser historicamente uma fonte de tensões. Quando o papado era dependente da nobreza, as lutas e rixas entre as famílias nobres vai contaminar também o exercício do papado. A luta pelo poder e influência entre os diversos atores políticos da Europa vai se refletir diretamente nas eleições papais. Esta realidade gerara tensões sem fim para a situação da Igreja europeia, dado a dependência do Papa de alguns poderes políticos europeus. A partir do mosteiro beneditino de Cluny, na Borgonha, fundado em 910, se engendrou um novo espírito cristão que veio atingir toda Igreja, inclusive a sua estrutura institucional. O Papa Leão IX e sobretudo o Papa Gregório VII reformaram o papado, tirando poder e influência de reis e famílias nobres sobre a Igreja (especialmente sobre a eleição do Papa) e dado mais poder às estruturas eclesiais (principalmente via os cardeais). Após a reforma cluniacense acontece, porém uma concentração do poder na mão do papa, gerando agora inúmeras tensões entre o papa e os reis;

Empobrecimento das massas (séc. XIII): A concentração de poder e riquezas nas mãos da igreja, de nobres e de burgueses vai aprofundar por outro lado um processo de empobrecimento das massas, impulsionando novamente tensões, sobretudo sociais;

Movimentos pauperísticos: O surgimento de movimentos pauperísticos (de protesto e espiritualidade) dentro da própria Igreja, como franciscanos, dominicanos, cátaros, valdenses, etc., será a contrapartida do empobrecimento da população. A pobreza não é apenas uma realidade econômica dentro do cristianismo medieval. Ela vai se tornar também uma questão espiritual. Muitos são os movimentos que terão na pobreza espiritual um de seus principais fundamentos. A rapidez com que estes movimentos tomaram vulto dentro da Igreja mostra o tamanho da tensão que emanava desta situação. A instituição eclesial vai reagir de forma diversificada frente a estes movimentos. Por um lado os reprimiu, inclusive com muita violência, tendo sido realizada até uma cruzada contra os cátaros, que praticamente os dizimou. Também os valdenses foram duramente reprimidos, mas este grupo, mesmo reduzido, sobrevive até nossos dias. Já os movimentos em torno de Domingos (dominicanos) e Francisco (franciscanos) foram acolhidos pela instituição eclesial, não sem uma certa tutela e adaptação;

Surgimento dos estados nacionais e o consequente processo de libertação do papado: A Europa medieval vê também nascer os estados nacionais e, sobretudo a consciência nacional. Este processo se deu em grande parte também como contraposição à subordinação dos reis ao papa. Mas há também um elemento religioso que marca este processo: a questão da identidade nacional, focada no modo de ser cultural local, onde a religiosidade mais independente tinha um papel importante. Figuras como João Wyclif (na Inglaterra) e João Huss (na Boêmia, atual República Tcheca) são lideranças deste processo;

Divisão do papado: Avignon (1309-1377) e Roma (1378 cisma de Avignon): Dentro desta Europa cheia de tensões, o próprio papado não ficou uno, tendo ocorrido sua divisão por um período, divisão esta que arrastou atrás de si inúmeras tomadas de posições de reis e príncipes, levando assim a tensão da divisão do papado para muitas regiões dentro da Europa e tendo como consequência uma perda de credibilidade desta instituição;

Movimento humanista (contra a inquisição) e impressão da Bíblia (Gutenberg: 1453-1455): Não se pode deixar de ver, por último nesta lista de fontes de tensão, o incipiente movimento humanista europeu, prenúncio de uma nova maneira de pensar e entender o ser humano e sua vida social. A compreensão sobre a importância e lugar do indivíduo vai ser um esteio do humanismo e aí, a invenção da imprensa terá um grande papel: o livro não vai mais ser um objeto de poder de poucos, mas vai colocar este poder na mão de muitos, mesmo que estes muitos sejam ainda uma elite que sabia ler.

Todos estes elementos contribuíram para impulsionar a proposta de Reforma de Lutero e outras que a esta se sucederam. O Papa Júlio II (1503-1513) havia percebido o clamor por reformas na Igreja. Com este intuito e para acalmar os ânimos e esvaziar o Concílio de Pisa (1511), convocado pelos cardeais franceses por pressão do rei Luís XII, convoca o V Concílio do Latrão (1512-1517), no qual foram aprovadas diversas reformas que nunca chegaram a ser implantadas e muitas outras questões urgentes nem sequer foram abordadas. Assim, as Reformas do século XVI não podem ser vistas como fatos isolados no tempo e na história, nem como algo ligado aos seus personagens desencadeadores (Lutero e o Papa). Dentro deste contexto bastante amplo, entretanto, alguns fatos concretos desencadearam o processo que resultou no rompimento institucional.

O fato imediato que desencadeou as divergências, e pode ser considerado a gota d'água que causou o cisma, foi a questão das indulgências. Em 1506 o Papa Júlio II, tendo em vista as dívidas da Igreja ocasionadas, sobretudo com o início da construção da Basílica de São Pedro e com os gastos com os exércitos publica uma bula concedendo indulgência plenária a quem ao praticar o sacramento da penitência oferecesse um dinheiro para as obras da Basílica. A indulgência não substituiria nem o ato da confissão, nem o da absolvição, mas poderia ser feito, sim, substitutivamente à penitência aplicada na confissão. O papa sucessor, Leão X, renovou em 1515 o valor da bula. Estas indulgências transformaram-se numa espécie de bônus que poderia ser comprado. Rapidamente o sistema de indulgências se tornou um sistema de comércio e passaram a ser vendidas em muitas partes da Europa, sobretudo por clérigos religiosos. Para a Alemanha, o frade dominicano Tetzel fora designado pregador de indulgências. Alguns príncipes não permitiram que se vendessem indulgências em seus territórios. Os dominicanos em suas campanhas de vendas de indulgências, ao estarem próximos do território onde Lutero vivia (território que não permitia a venda de indulgências), receberam a reação do monge agostiniano Martinho Lutero, que era professor de teologia e confessor. Lutero escreveu uma carta ao arcebispo sobre o assunto e a esta acrescentou 95 teses do por quê era contra a venda de indulgências. Diz a tradição que estas teses também foram colocadas a público, na porta da catedral. Não se tratava inicialmente, como se vê, de nenhum ato necessariamente revolucionário. Para diversos príncipes alemães, entretanto, que não concordavam com o pagamento de indulgências, o manifesto de Lutero foi a ocasião esperada para tentar se livrar da influência e até ingerência da Igreja romana em seus territórios. Não há dúvida que razões de fé estiveram presentes neste processo, mas não se pode deixar de ver os outros fatores. As posições de Lutero, por um lado, e da Igreja Católica por outro, vão se acirrando cada vez mais entre 1517 e 1520. Pontos importantes neste percurso: inicialmente a proclamação das 95 teses de Lutero, às quais a Igreja romana reagiu criando um processo por suspeição de heresia. Em outubro de 1518, Lutero foi interrogado em Augsburgo por Caetano, legado papal, sem que deste processo se tivesse chegado a um acordo. Lutero apela ao Papa e propõe a convocação de um Concílio. Novo ponto alto da tensão aconteceu em Leipzig, na qual Lutero expressa sua opinião contrária à força vinculativa das decisões dos concílios. Num escrito de 1520, Lutero expõe sua opinião contrária ao múnus docente do Papa e expressa sua compreensão sobre os sacramentos, aceitando como tal somente o batismo, a santa ceia e a penitência (com restrições). A 15 de junho de 1520, Leão X assina a bula Exsurge Domine (Ergue-te, Senhor), citando 41 teses de Lutero como contrárias à doutrina da Igreja. A 10 de dezembro de 1520, Lutero queima publicamente esta bula e o Papa então pronuncia o anátema sobre ele a 03 de janeiro de 1521. Ainda em abril do mesmo ano houve uma tentativa de conseguir que Lutero se afastasse de sua posição, na chamada Dieta de Worms, o que não ocorre, marcando assim definitivamente a divisão.

Nesta discussão, Lutero e os que se unem à sua posição redescobrem a autoridade da Bíblia e de sua importância (Lutero traduz a Bíblia para o alemão). Mais que isso, introduziu-se o princípio sola Scriptura como instância de autoridade para interpretar a fé (tirando a tradição, que é, na Igreja Católica Romana instância de interpretação correta, junto com a Escritura)[2]. Outro princípio base de Lutero é o salvação pela fé (sola fide): só a fé salva. E a salvação é dom, é graça divina (sola gratia). Em torno das diferenças teológicas entre Roma e Lutero, que não puderam ser resolvidas e impulsionado pelo apoio político de muitos príncipes, a parte da Igreja que se colocara em favor de Lutero, cria aos poucos também uma outra estrutura de Igreja. No ceio do Catolicismo foi convocado o Concílio de Trento (1545-1563), que executou a chamada Reforma Católica (às vezes também chamada de contra-Reforma). Com estes dois fatores (Reforma Luterana e Reforma Católica) as duas facções foram ficando distantes uma da outras, tanto na compreensão de fé, como na estrutura e organização da Igreja. Distância esta que consolidou o cisma. Este cisma não se limitou, porém à criação de duas facções. O espírito de libertação de Lutero e de volta ao Evangelho como protesto contra outra instituição eclesial deu margem a muitas outras divisões (o que se chama positivamente: fundação de nova Igreja), processo conhecido no seio do protestantismo até hoje.

O que desencadeou o processo que levou à criação das Igrejas da Reforma foi uma questão teológica (a das indulgências). Mas dentro do ambiente amplamente de tensões que vivia a Igreja e toda a Europa, esta questão teológica, inicialmente menor, acaba puxando para si muitos outros elementos candentes e que serão decisivos para que a divisão institucional tivesse ocorrido e se mantido.

e) A Igreja Anglicana. No surgimento da Igreja Anglicana também está uma questão político-eclesial, muito mais que uma diferença teológica. Todas as tensões descritas anteriormente no contexto da Reforma atingiam com maior ou menor intensidade também na Inglaterra, criando tensões que predispuseram os ânimos ao surgimento de uma nova instituição eclesial. O fato específico que desencadeou o cisma foi a questão do divórcio do rei Henrique VIII de Catarina de Aragão. O rei se casara em 1509 com Catarina, viúva de seu irmão Artur e tia do Imperador Carlos V. Sobre a validade do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão pairavam dúvidas, já que eram cunhados. Foi concedida, no entanto, uma dispensa pontifícia com a argumentação de que o casamento não havia sido consumado. O rei apaixona-se, entretanto por Ana Bolena e quer com ela se casar (também pelo fato de desejar a possibilidade de um descendente masculino para o trono, dado que do casamento com Catarina só sobrevivera uma mulher, a futura rainha Maria I). O rei pleiteia o reconhecimento de nulidade de seu casamento. O caso foi levado aos tribunais eclesiásticos ingleses. Mas Catarina apela a Roma em 1529 e o Papa Clemente VII negou ao rei o reconhecimento da nulidade matrimonial. O rei se vê numa situação de pressão, dado que Ana Bolena já estava grávida e se o filho fosse homem, deveria ser legítimo para ter direito à sucessão. Ele recorre a diversas universidades para que examinem o caso de nulidade matrimonial, sendo que algumas se posicionam favoravelmente e outras não. Em 1531, o rei se faz proclamar pelo clero “único protetor e, na medida que a lei o permite, cabeça suprema da igreja e do clero da Inglaterra”. Claramente uma proclamação de sentimento nacional. Não era ainda uma ruptura com Roma, mas já um tensionamento institucional. Em janeiro de 1533, o Cardeal de Cantuária, Tomás Cranmer celebra secretamente o casamento de Henrique com Ana Bolena e declara nulo o casamento com Catarina de Aragão. O Papa responde excomungando Cranmer e Henrique VIII replica com a aprovação pelo Parlamento da “Ata de Supremacia” (1534), reconhecendo o rei como “cabeça da Igreja da Inglaterra”. Com este ato do parlamento, criou-se a base jurídica para uma Igreja nacional (Igreja Anglicana), havendo o cisma com a Igreja Romana. Esta Igreja nacional não reconhece mais a autoridade do papa sobre ela. Em termos de organização, liturgia, teologia, etc., continua inicialmente, entretanto na mesma tradição da Igreja Católica Romana. Com a morte de Henrique VIII, sobre ao trono Eduardo VI, que vai modificar a Igreja, introduzindo alguns princípios organizativos do protestantismo, mas ao mesmo tempo manteve a fidelidade à tradição de fé romana, aceitando, por exemplo como válidas as decisões dos concílios antigos. A sucessão na casa real inglesa foi aos poucos introduzindo diversas mudanças, tanto na Igreja quanto na própria legislação da sucessão ao trono. Até hoje o Rei ou Rainha da Inglaterra deve ser membro da Igreja anglicana. Na organização da Igreja anglicana não há uma autoridade religiosa central, o que deu a possibilidade de uma diversidade bastante grande de Igrejas com organizações diferentes. Devido por exemplo à aceitação dos Concílios da antiguidade, aceita-se a proclamação de Maria como Mãe de Deus (há inclusive Igrejas anglicanas com veneração aos santos). A organização hierárquica continua com o tríplice ministério, como na Igreja Romana: diaconato, sacerdócio e episcopado. No Reino Unido, a Igreja anglicana continua ligada até hoje oficialmente com o Estado: é a Igreja oficial, à coroa cabe a nomeação de bispos (após consulta). Nos outros países, porém, a Igreja Anglicana não têm vínculo estatal e com sua grande expansão – especialmente seguindo a própria expansão inglesa – nos dias de hoje de encontra presente em muitos países, mas com organizações diversas. Em 1888 foi realizada em Lambeth uma conferência das Igrejas de tradição anglicana e nesta foi elaborado um documento que coloca quatro elementos como base constitutiva insubstituível da Igreja Anglicana: a) A Bíblia como palavra de Deus e autoridade máxima em questões doutrinais; b) o Credo niceno-constantinopolitano como expressão comum de fé; c) Batismo e Santa Ceia como os dois sacramentos de instituição divina; d) o episcopado histórico, de sucessão de pessoas e do Espírito Santo.

No surgimento da Igreja Anglicana estão em primeiro lugar motivos pessoais e políticos. Destes a discussão foi para motivações organizacionais e quiçá teológicas, mas ficaram estas em segundo plano na discussão que levou à Ata de Supremacia, afirmação do sentimento nacional eclesial inglês que deu origem oficial a uma nova instituição eclesial. Este primeiro momento da separação institucional da Igreja da Inglaterra da de Roma não significou necessariamente um distanciamento teológico ou doutrinário tão grande. A Reforma do anglicanismo vai se consumar com sucessores de Henrique VIII, especialmente sob Isabel I, com documento de 1563, chamado de “39 Artigos da Religião”, que até hoje é o principal documento de base de fé do Anglicanismo e marca seu distanciamento da intepretação católica romana, aproximando-se mais da tradição de Calvino.

f) As Igrejas reformadas. O movimento de reforma dentro do Cristianismo desencadeado por Lutero teve muitos desdobramentos com diversos pensadores propondo mudanças. Algumas delas tiveram aderência e formaram comunidades eclesiais, outros formaram movimentos sócio-políticos. Alguns sobreviveram ao tempo, outros não. O maior grupo de igrejas que irão se formar neste período são as Igrejas Reformadas (no Brasil mais conhecidas pelo nome de Igrejas Presbiterianas) nascidas a partir das propostas do reformador franco-suíço João Calvino (1509-1564). Basicamente as reformas de Calvino podem ser comparadas às de Lutero. João Calvino era um católico francês de caráter pacato que adere em 1533 às ideias da Reforma. Por sua atividade intelectual nesta linha, é perseguido na França e se refugia em Genebra, na Suíça, onde passa boa parte de sua vida e lá falece. A obra teológica de Calvino "Instituição Cristã" (Institutio Religionis Christianae, publicada em 1536) conheceu uma grande divulgação e deu um impulso expansivo muito grande à forma de Igreja por ele concebida. Diferentemente de Lutero, cuja Reforma permaneceu de cunho mais germânico (até hoje inclusive), Calvino atingiu um caráter mais universal e talvez um afinco mais missionário. "A originalidade do calvinismo - ao menos em seus princípios - funda-se nas doutrinas de transcendência divina, da predestinação e da eucaristia; e, no plano da organização eclesiástica, no regime presbiteriano (governo de presbíteros e anciãos), oposta à forma episcopal"[3]. Muitas Igrejas que desejaram se tornar independentes de Roma, adotaram os princípios de Calvino. As que seguem esta tradição são chamadas em alguns países de Igrejas Reformadas e em outros de Igrejas Presbiterianas. Estas Igrejas não têm uma estrutura hierárquica ordenada, mas de ministérios, que são quatro: pastor, doutor, ancião (presbítero) e diácono. Batismo e santa ceia são os únicos sacramentos. Há uma grande sobriedade na Igreja e no culto: nada de flores, imagens, vestimentas litúrgicas... A Bíblia ocupa um lugar central.

A motivação pela qual surgem as Igrejas Reformadas são preferentemente teológicas. Em sua origem trata-se de um desejo de mudar a forma de ser Igreja. Não está ali, diferentemente do caso de Lutero e Henrique VIII, uma querela pessoal entre Calvino e Roma. Calvino pode ser considerado mais um ideólogo (eclesiólogo) que propõe um novo modo de ser Igreja e de compreender a Teologia. E a este modo se juntam grupos que formam Igrejas.

Estas divisões institucionais ocorridas no século XVI no seio do cristianismo europeu irá ter uma repercussão maior em termos de cristianismo mundial, pois foi neste mesmo século que ocorreu um grande expansionismo mercantilista e colonizador por parte de diversos países envolvidos em reformas eclesiais. Assim, as divergências eclesiais ocorridas em terras europeias foram – com a colonização – também exportadas para as respectivas colônias. Nisto estiveram envolvidos especialmente Portugal, Espanha, França, Holanda e Inglaterra. O período colonial que se segue até arrastou para dentro das regiões colonizadas também as querelas eclesiais de seus países de origem.

Outro elemento importante na história deste contexto de reformas eclesiais do século XVI e que não abordaremos aqui, foi o fato de que as tensões no campo eclesial não ficaram em discussões teológicas e doutrinais. Elas levaram também a diversas guerras, entre elas a dos camponeses na Alemanha, a dos católicos e huguenotes na França, a guerra dos trinta anos, etc., que se estenderam para dentro do século XVII e redesenharam parte do mapa político da Europa.

g) Igrejas batistas. Este movimento de divisão eclesial institucional aliado aos Estados europeus gerou também um outro fenômeno eclesial, o de Igrejas que surgiram de movimentos contestatórios às Igrejas alinhadas com os Estados, o que Hortal chama de “igrejas não-conformistas ou livres”[4]. Entre elas estão as Igrejas batistas. Estas Igrejas nasceram no início do século XVII. Seus organizadores iniciais foram John Smyth e Thomas Helwys. John Smyth é um clérigo anglicano que passa a discordar do batismo de crianças em sua Igreja. Refugia-se na Holanda onde se batiza novamente e a ele adere um grupo de pessoas, fundando uma comunidade em 1609. Thomas Helwys é um advogado inglês que o acompanha, sendo responsável por voltar a Londres e aí formar em 1612 uma comunidade nos mesmos moldes, que é considerada a primeira comunidade batista britânica. Smyth não voltou à Inglaterra, tendo falecido na Holanda no mesmo ano da fundação da comunidade de Londres (1612). Muitos veem as raízes da inspiração do movimento batista nos chamados anabatistas, movimento radical da época de Lutero, que não aceita o batismo de crianças e começa a rebatizar as pessoas (daí o nome de anabatistas/batistas). Este movimento foi muito perseguido na Alemanha e Suíça por suas posições políticas a favor do pacifismo, contra qualquer juramento nos tribunais, contra a cobrança de juros, a favor de uma separação estrita entre Igreja e Estado. Esta ligação entre os anabatistas e a fundação das Igrejas batistas não são entretanto tão claras. Thomas Helwys escreveu o texto Uma Declaração Breve do Mistério da Iniquidade, no qual, entre críticas ao papado e a outras correntes eclesiais, admoesta a monarquia a submeter-se a Deus. Tentou entregar o texto ao Rei da Inglaterra; foi entretanto preso e na prisão (onde o texto foi encontrado) ficou até a morte. Este texto é considerado fundacional para a busca de liberdade religiosa e eclesial frente ao Estado. Como muitas outras Igrejas, também a batista buscou refúgio no Novo Mundo, tendo sido fundada por Roger Williams em 1639 a primeira  comunidade batista nos Estados Unidos. Lá esta Igreja conheceu uma grande expansão, tanto por causa de sua posição política, como por sua simplicidade, seu emocionalismo cultual e sua posição de abertura perante imigrantes. Conheceu grande expansão nos EUA, principalmente entre os negros. Há dentro da tradição batista muitas divisões. A primeira grande divisão dentro da Igreja Batista acontece no século XVIII por causa de uma discussão sobre o caráter da salvação. Assim um grupo defende, Jesus Cristo redimiu toda a humanidade. Estes são chamados de batistas gerais, enquanto outro grupo defende que a redenção refere-se somente aos predestinados, os chamados batistas particulares. Houve, mais tarde, um movimento de unificação dentro da própria Igreja Batista, do qual resultou a Aliança Batista Mundial, fundada em 1905, que reúne hoje a maioria das Igrejas. O princípio organizacional da Igreja é porém a autonomia da Igreja local, que é dirigida geralmente por pastores e anciãos (nomeados pelos membros da comunidade). Qualquer pessoa pode ser nomeada para estes ministérios e não se conhece a ordenação. Os sacramentos são dois: o batismo (feito só para adultos e por imersão) e a santa ceia. Tradicionalmente não se ligam ao Estado e historicamente estiveram muito ligadas a lutas pela liberdade (p.ex. Martin Luther King).

h) As Igrejas congregacionais. Nasceram na Inglaterra num movimento do século XVII de oposição ao anglicanismo e especialmente da crítica à união entre a Igreja e a Coroa. As opções de Igreja eram ou as Igrejas tradicionais (católica ou ortodoxa), ou então a Igreja ligada ao Estado. Deste impasse surgiram movimentos dissidentes querendo a autonomia tanto frente às Igrejas estabelecidas quanto frente ao Estado. No grupo dos precursores deste movimento estão dois ingleses, Robert Browne e John Robinson. Seu movimento se estabelece definitivamente nos Estados Unidos, embora por um certo período também tenha sido forte na Inglaterra, onde mais tarde foi absorvido novamente pelo anglicanismo. Este movimento privilegiava a autonomia da comunidade local e sua liberdade de qualquer instância superior (daí o nome congregacionais). Estas comunidades têm uma ideia de organização fortemente teocrática e influenciaram muito o movimento de independência dos Estados Unidos. Como a comunidade local é a autoridade máxima, uma ordenação ministerial também não é aceita por estas comunidades. Isto tanto a ordenação no sentido católico, como o ministério no sentido luterano. Estas igrejas são marcadas historicamente por um forte espírito missionário e por isto conheceram uma grande expansão. São de certa forma as precursoras do chamado american way of life (estilo americano de vida): espírito de iniciativa, de independência, autodeterminação, mas ao mesmo tempo rigoristas, puritanos e teocráticos. Sua estrutura aproxima-se da das Igrejas reformadas ou presbiterianas, com a diferença de que a comunidade local tem total autonomia (também a autonomia do indivíduo). Esta autonomia está na base da criação de muitas outras Igrejas (o que é um forte fator de expansão).

i) As Igrejas metodistas. Estas Igrejas nasceram da Igreja anglicana como consequência do trabalho reformador do clérigo John Wesley (1703-1791). Wesley procurou já desde cedo levar uma vida cristã rigorosa: leitura metódica da Bíblia, jejuns, exames de consciência, austeridade no vestir-se... Daí o nome "metodistas", que foi o apelido dado ao seu grupo quando ainda era universitário. Como presbítero anglicano ele vai às colônias inglesas dos Estados Unidos, onde começou um estilo próprio de vida austera e de pregação. Tendo retornado à Inglaterra, teve, no dia 24 de maio de 1738 uma profunda experiência de fé, na qual – segundo relata – teve a certeza da ação salvífica de Cristo em si. Este dia – 24 de maio – é comemorado como “Dia de Wesley”. Em princípio, Wesley não se entende como reformador, nem pretendia ele criar uma nova Igreja. A oposição a ele e ao grupo que ele arrebanha dentro da comunidade, bem como ao seu método de evangelização cresce na Igreja Anglicana, de tal modo que em 1739 foi ele proibido de pregar nas Igrejas anglicanas. Ele passa então a uma pregação nas praças e ruas. Assim passou o resto da vida como pregador itinerante. Tendo conseguido fundar muitas comunidades de seguidores, que não eram novas Igrejas, mas associações que seguiam este método de vida cristã. A Igreja anglicana recusa-se entretanto a dar assistência pastoral a estes grupos. Frente a esta situação e depois de muito titubear, Wesley mesmo passa impor as mãos e ordenar ministros para o pastoreio (1784), quebrando assim a tradição anglicana e caracterizando o cisma. A partir destas ordenações realizadas por Wesley, cria-se uma hierarquia iniciada por ele, embora ela não entenda que isto seja algo separado da Igreja Anglicana. Estas comunidades e estes ministros continuavam a se entender como parte da Igreja anglicana e somente em 1828 – 37 anos após a morte de Wesley – é que a Igreja Metodista separa-se formalmente da anglicana. Por causa do estilo de vida de seu fundador, a Igreja que daí nasceu conservou o fato do pastor ser um pregador ambulante, que visita as comunidades locais. Um certo número de comunidades com seus pastores estão sob a coordenação de um superintendente, denominado também de bispo. A história da Igreja metodista conhece inúmeras divisões internas. Em 1881 houve uma tentativa de reunificar as Igrejas metodistas. Desta tentativa resultou a hoje Conferência Metodista Mundial, na qual estão reunidas 65 Igrejas. Com características próprias pode-se colocar a ênfase na Sagrada Escritura como autoridade última de fé, cujo direito de interpretação é individual; o rigorismo nos costumes (o ser humano é fraco e pecador) e a insistência na vida austera no seguimento de Cristo e a grande importância da pregação. Como o anglicanismo – e o luteranismo – a Igreja Metodista entende que a justificação vem pela fé, porém a santificação dos justificados é importante mediante uma vida de piedade e caridade. Desta compreensão se deriva a grande preocupação social presente na Igreja Metodista. Seguindo o exemplo anglicano, Wesley também elabora uma declaração e artigos de fé, os “25 artigos de fé” que continuam servindo de orientação de identidade eclesial para as diversas Igrejas metodistas.

A motivação que leva ao surgimento da Igreja Metodista é de ordem organizacional e pessoal. John Wesley propunha uma outra forma de atuação evangelizadora de sua Igreja. Sua liderança com desta proposta foi aos poucos criando uma realidade eclesial própria dentro da Igreja Anglicana, até muito mais tarde (inclusive após a morte de Wesley), as comunidades com fundadas com sua proposta vão se tornar institucionalmente uma Igreja própria.

j) Os Mórmons. O grupo conhecido comumente pelo nome de Mórmons tem o nome oficial de Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Esta Igreja nasceu do trabalho de Joseph Smith (1805-1844). Este afirmava ter tido visões que se estenderam de 1820 a 1829. Nestas o anjo Marôni lhe indicava um lugar onde se encontraria o Livro de Mórmon, livro este que seria “o livro mais correto de todos os livros da terra e chave de nossa religião”, servindo não somente como complemento da Bíblia, mas também correção da mesma. Smith escreveu a mensagem deste livro e ele foi levado novamente ao céu pelo anjo. O chamado Livro de Mórmon é de suma importância para esta Igreja, por vezes considerado de importância maior que a Bíblia. Este livro é de caráter profético e pretende narrar – na concepção da Igreja – a história dos remanescentes das 10 tribos de Israel (Reino do Norte) que teriam se estabelecido nos Estados Unidos. Após o Livro de Mormon, Smith tem outras revelações. Em torno destas revelações e seu escrito, começa a reunir adeptos e forma uma comunidade chamada de Reino Cristão. Após terem sofrido perseguições em diversos lugares, Smith, com seu grupo se refugia no estado de Utah, onde funda Salt Lake City, sede central da Igreja. De cunho milenarista, a doutrina Mórmon dá margem a interpretações diversas sobre os mesmos temas. Entende-se que o fim do mundo está próximo, o que faz com que as famílias estoquem alimentos para sobreviver à catástrofe por vir. Esta compreensão influenciou uma vida austera e um espírito de poupança. O batismo pode ser repetido para o perdão dos pecados, e pode ser feito inclusive em favor dos mortos. Por conta desta compreensão, os Mórmons iniciaram um trabalho de recolher dados genealógicos de seus membros, para assim poderem se batizar para perdoar os pecados de seus antepassados. Esta busca de dados sobre antepassados deu origem ao que é hoje o maior arquivo banco de dados genealógicos do mundo. Trata-se de uma Igreja de forte cunho missionário e os homens devem dedicar 2 anos de sua vida à pregação, financiada por si mesmos. É muito rigorosa na arrecadação do dízimo, o que a faz financeiramente sólida. Por muitos anos a poligamia foi admitida entre os Mórmons norte-americanos. Foi suprimida em 1890 por intervenção do Estado.

No surgimento da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias está uma motivação religiosa e teológica. As experiências religiosas de Joseph Smith foram a motivação inicial e o embrião a partir do qual se forma uma comunidade religiosa que vai se organizando e se rotinizando no sentido de formar uma comunidade eclesial. A coesão e organização em comunidades inicialmente separadas inclusive geograficamente do resto da sociedade irá acontecer muito mais por pressão e perseguição da sociedade do entorno, que por iniciativa própria.

k) As Igrejas adventistas. Nasceram dum movimento dentro da Igreja batista norte-americana, liderado sobretudo por Willian Miller (1782-1849). Miller, inclinado a ler textos apocalípticos da Sagrada Escritura, chega ao cálculo de que a segunda vinda de Cristo se daria no ano de 1843. Criou uma enorme expectativa em torno desta espera, que não se concretizou. Após este fracasso, ele refaz os cálculos e prevê a segunda vinda de Cristo para o dia 22 de outubro de 1844. Após fracassar esta segunda previsão, ele é expulso da Igreja batista e funda uma comunidade de espera da segunda vinda de Cristo (daí o nome "adventista"), sem, porém, determinar a data. O movimento de Miller recebeu grande impulso graças a Ellen Gould Harmon (1827-1915), também conhecida como senhora White (por ter se casado com o pastor adventista James White). Ela reinterpreta as previsões de Miller, bem como seus escritos e escreve uma vasta literatura, até hoje muito difundida, especialmente entre os adventistas. Nestas obras é discutida a questão da segunda vinda de Cristo, das condições, do destino dos pecadores, do céu, da terra... Todas estas questões, que dão margem a muitas interpretações, também foram motivo de outras cisões dentro do próprio movimento adventista. Em 1860 formou-se um grupo chamado "Igreja Adventista do Sétimo Dia", grupo que tornou-se o mais influente dentro do movimento adventista. Não apenas a difusão de obras adventistas e a fundação de numerosas casas editoriais ajudou a expansão desta Igreja, mas também o seu trabalho social na área da saúde e a conhecida emissora radiofônica internacional "The Voice of Prophecy", que chega a cem países. Em termos de doutrina aproximam-se das Igrejas reformadas, tendo porém peculiaridades, como a esperança da vinda iminente de Cristo, só os justos são imortais, a observância estrita dos dez mandamentos (com isso eles celebram rigorosamente o sábado e não o domingo[5]), a grande importância à passagem de que o corpo é o templo do Espírito Santo e por isso o interesse na questão da saúde, o incentivo à prática vegetariana, desaprovação do consumo do café, do chá, da carne de porco, de bebidas alcoólicas e do tabaco. Por conta do rigorismo bíblico também há uma prática estrita do dízimo, do lava-pés, do batismo por imersão. A colaboração dos adventistas com movimentos ecumênicos é praticamente nula.

Com o surgimento da Igreja Adventista temos mais um exemplo de formação eclesial a partir de interpretação teológica. Em sua motivação inicial está a interpretação bíblica própria que faz Willian Miller e a força de atração que tem esta sua proposta. Há no surgimento desta Igreja um elemento interessante que é uma espécie de co-fundação ou re-fundação que se dá pela senhora White. Seus escritos, reinterpretando Willian Miller são de fundamental importância para a comunidade adventista. Sua força está tanto na reflexão teológica que faz em seus livros[6] de elementos apocalípticos, o que retoma a inspiração inicial do movimento, mas também numa série de outros elementos, que passam a ser importantes para a Igreja, entre os quais se destacam a questão educacional e a de saúde. Por conta desta inspiração, a Igreja Adventista criou colégios e centros educacionais em muitos países, como também tem uma atuação destacada em questões relacionadas à saúde no que tange especialmente aos modos saudáveis de vida e de alimentação.

l) Os Testemunhas de Jeová. De caráter tipicamente milenarista, o grupo Testemunhas de Jeová pode ser caracterizado como de tradição cristã ou então judaica. Este movimento foi fundado em 1872, com o nome de “União Internacional dos Verdadeiros Inquiridores da Bíblia”. Em 1931 adotou o nome atual, Testemunhas de Jeová. O fundador do movimento é Charles Taze Russell (1852-1916), norte-americano de origem presbiteriana e convertido à Igreja Adventista. Nesta recebera, sobretudo as doutrinas milenaristas e dedicou-se muito ao estudo do livro de Daniel e ao Apocalipse, por entender que o fim do mundo estava próximo. Fixou diversas datas: 1874, 1914, e 1925. Quando de sua morte, os seguidores abandonaram a ideia de fixar uma data para o fim do mundo. São monoteístas extremos, não aceitando a ideia da Trindade. Jesus Cristo é criatura e o Espírito Santo não é pessoa divina. Por conta desta interpretação teológica, não poderiam ser considerados a rigor como cristãos, mas ao mesmo tempo seguem os ensinamentos de Jesus Cristo. Como Jesus é entretanto interpretado como somente humano e não divino, ele não é o Salvador, dado que somente a Deus cabe a ação de salvação. E esta é conseguida pelas boas obras do esforço humano na luta contra o mal. Nisto diferem claramente, por exemplo, da interpretação das Igrejas reformadas, que entendem a salvação somente pela fé. Fazem muitas vezes uma leitura literal da Bíblia e por causa das passagens de Gn 9,4 e Lv 7,26 que afirmam ser o sangue propriedade de Deus, não admitem a transfusão sanguínea, o que tem chamado a atenção sobre o seu movimento. Combatem fortemente a idolatria e por isso são contra o serviço militar, a saudação à bandeira e outros juramentos cívicos. Os membros do grupo Testemunhas de Jeová não têm qualquer atuação política. Pelo contrário, a atuação política é inclusive proibida aos seus membros. Este distanciamento de atuação cívica ou política é teologicamente baseado na ideia de que “não são deste mundo”, por isso não deve aderir às ações consideradas típicas da ordem secular. Os membros desta Igreja são muito ativos no trabalho missionário utilizando, sobretudo o método de visita às casas. O local de reunião é chamado de “Salão do Reino”. Em termos organizacionais, é uma instituição que tem uma central mundial nos Estados Unidos (no Estado de Nova Iorque), a partir de onde a organização é governada no mundo inteiro.

Com o surgimento do movimento Testemunhas de Jeová, temos novamente um exemplo típico de que uma interpretação teológica (bíblica) foi o principal motivador da criação da comunidade. Neste processo, o papel da liderança pessoal – no caso a de Charles T. Russell – foi também decisivo.

m) A Igreja vétero-católica. Um novo cisma no ceio da Igreja católica veio ocorrer no século XIX, mais especificamente como decorrência do dogma da infalibilidade papal proclamado pelo Concílio Vaticano I (1870). A recusa da aceitação desta proclamação conciliar levou à fundação de uma Igreja separada da Católico-Romana, mas de tradição católica. Esta Igreja é relativamente pequena em número de membros e é bastante ativa no trabalho ecumênico, tendo já reconhecido como válidas as ordenações da Igreja anglicana em 1925 e desde 1932 mantém intercomunhão total com os anglicanos. A Igreja Vétero-católica aceita como válidos todos os concílios da Igreja antiga e tem seu episcopado na sucessão apostólica. Como diferença da Igreja católica romana, além da já citada recusa da infalibilidade papal, os vétero-católicos não aceitam a Imaculada Conceição nem a Assunção, mas têm veneração por Maria. Em termos de sacramentos têm os mesmos sete que a Igreja Católica Romana, mas aboliram o celibato obrigatório para o sacerdócio no início do século XX e desde 1966 os vétero-católicos têm também a ordenação sacerdotal para mulheres. Na segunda-feira de pentecostes (27 de maio de 1996) duas mulheres foram as primeiras a receber o sacramento da Ordem nesta Igreja.

O surgimento desta Igreja a partir do ramo católico romano está ligado a questões tanto teológicas como organizacionais. O Concílio Vaticano I foi o desencadeador do processo. Este concílio, aliás, foi um tanto conturbado devido ao contexto de guerras em que ocorreu e não foi oficialmente encerrado. As decisões tomadas ali – por um grupo relativamente menor de bispos que puderam estar presentes devido às circunstâncias – desagradou inicialmente uma parte significativa do episcopado especialmente germânico. Com parte deste episcopado se conseguiu mais tarde acordos. Com parte não e é justamente esta parte que se decidiu pela iniciativa de uma comunidade eclesial que conservava os princípios anteriores ao Concílios (daí o nome de vétero-católicos).

n) As Comunidades pentecostais. O pentecostalismo é um fenômeno religioso nascido no final do século XIX. As comunidades pentecostais nascem dentro das comunidades evangélicas norte-americanas, especialmente na esteira de campanhas denominadas despertar religioso ou reavivamento religioso. Eram campanhas de missão organizadas com o intuito de fazer reavivar a fé dos membros das diversas Igrejas que estivessem um tanto distantes e não-participantes. De certa forma inspirados no pregador ambulante John Wesley, o despertar religioso passa a ser um verdadeiro fenômeno transconfessional de pregadores ambulantes que passam pelas diversas comunidades fazendo o reavivamento da fé. Estes movimentos davam muita ênfase à questão do Espírito Santo, ao experimentar um "novo pentecostes", tendo algumas comunidades iniciado com o batismo no Espírito Santo. Algumas denominações começam a rechaçar de seu meio estes pregadores ambulantes e estes, por sua vez criam grupos/comunidades a partir de suas experiências, grupos estes que se tornam então Igrejas independentes. Seguem, com isto, um pouco o princípio congregacional: cada congregação pode ser uma Igreja independente. Por causa da importância dada à experiência do “novo pentecostes", da experiência do Espírito, as Igrejas nascidas destes movimentos passaram a receber a denominação de Igrejas Pentecostais, expressão esta que nem todas empregam oficialmente (como p.ex. a Assembleia de Deus, a Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular), mas outras o fazem (Igreja Pentecostal Deus é Amor). O fenômeno do pentecostalismo ocasionou o surgimento de muitas Igrejas, cujas estruturas variam muito entre si: desde as que adotam um pouco a estrutura metodista (organização hierárquica por regiões), como as congregacionalistas (a comunidade é autônoma). Em outras o carisma do próprio fundador deixou alguma forma específica de organização. O fenômeno pentecostal não se restringiu porém apenas à criação de Igrejas manifestamente pentecostais. Este fenômeno também pode ser observado no interior de outras Igrejas evangélicas e mesmo no seio da Igreja católica com o Movimento de Renovação Carismática. Algumas características destas Igrejas: leitura fundamentalista da Bíblia, ênfase na santificação pessoal, dom da fala em línguas (chamado de batismo no Espírito), ênfase à figura do demônio, rigorismo (em diversos aspectos, dependendo de comunidade para comunidade: alguns rigorismo no dízimo, outros no vestir, outros ainda no comportamento).

Em cerca de um século, o fenômeno pentecostal atingiu grande parte do cristianismo, trazendo uma renovação eclesial muito forte, bem como também tensões na convivência com as Igrejas cristãs tradicionais. Por ser um fenômeno tão amplo, voltaremos à temática mais adiante.

o) A Igreja Católica Apostólica Brasileira. Dentro da Igreja Católica Apostólica Romana ocorreu no Brasil um cisma em 1945, com a fundação da Igreja Católica Apostólica Brasileira. A origem desta Igreja está ligada à figura de Dom Carlos Duarte Costa. Dom Carlos (1888-1961) foi ordenado sacerdote católico romano em 1911 e em 1924 foi ordenado bispo na catedral metropolitana do Rio de Janeiro, tendo sido designado como 2º bispo da diocese de Botucatu, onde começa seu múnus episcopal em fevereiro de 1925. À frente da diocese, Dom Carlos vai exercer intensa atividade pastoral, social e política. Estas atividades vão gerar por um lado o apoio de muitas pessoas, por outro, oposição de grupos sociais e eclesiais. O apoio aberto dado por dom Carlos à Revolução Constitucionalista de 1932 foi outra origem de tensões. Desejava igualmente ver implantadas reformas em sua Igreja Católica Apostólica Romana. Assim, em sua visita ad limina apostolorum em março de 1936, fez ao papa Pio XI diversas solicitações: a) Pedido de licença para manutenção em sua diocese de um seminário maior; b) Possibilidade de celebrar a missa na língua vernácula; c) Igualmente a administração dos sacramentos em língua vernácula; d) Supressão do celibato obrigatório para o clero; e) Abolição da confissão auricular; f) Introdução da confissão geral ou comunitária; g) Distribuição da comunhão em duas espécies (pão e vinho); h) Introdução do diaconato permanente para casados; i) Celebração da Eucaristia com o presidente voltado para o povo (versus populi); j) Governo colegiado da Igreja por um grupo de bispos junto com o papa; k) Maior participação do leigo na Igreja. Estas solicitações não foram acolhidas pela Igreja e aumentaram as tensões já existentes entre dom Carlos e outras autoridades eclesiásticas. Por estas e outras tensões, ele foi obrigado a renunciar ao governo da diocese de Botucatu, o que ocorreu em 1937, tendo sido então nomeado como bispo titular de Maura. Após a renúncia foi viver no Rio de Janeiro, onde foi acolhido pelo Cardeal Leme. Com a substituição deste por dom Jayme Câmara, dom Carlos perde a proteção da arquidiocese do Rio de Janeiro. Acusado de ligações com os comunistas, foi inclusive preso por alguns meses no ano de 1944. Aos 6 de julho de 1945 foi tornada pública a sua ex-comunhão da Igreja Católica Apostólica Romana. Na mesma data, dom Carlos Duarte Costa fundou a Igreja Católica Apostólica Brasileira, tendo como finalidade, como consta na ata de fundação: “A Igreja Católica Apostólica Brasileira é uma sociedade religiosa, fundada para a propagação do Cristianismo em todo o território nacional, que se separa da Igreja Católica Apostólica Romana, pelos erros que ela vem cometendo desde o momento em que saíram das catacumbas, para trocar as belezas dos ensinamentos de Cristo, na sua simplicidade, humildade, pobreza, amor ao próximo, por uma instituição altamente mercantilizada, onde impera a pompa, com prejuízo da verdadeira Cristandade, que se encontra nos humildes, operários, legítimos representantes de Jesus de Nazaré”. Na mesma ata de fundação, dom Carlos é nomeado Bispo do Rio de Janeiro da Igreja Católica Apostólica Brasileira. A 16 de agosto do mesmo ano, dom Carlos publica o chamado “Manifesto à Nação”, considerado uma espécie de documento fundante da nova instituição. Nele dom Carlos expõe seu ponto de vista sobre diversos assuntos políticos, econômicos e teológicos, bem como sobre algumas formas de organização da Igreja. Entre elas, a defesa absoluta da liberdade civil, política, filosófica e religiosa; a liberdade educacional e científica; a suspensão do celibato eclesiástico; admite o divórcio; rejeita a confissão auricular e permite que seus sacerdotes exerçam uma profissão civil ou militar.

 

2.2 O esforço pela unidade

 

As divergências institucionais dentro do cristianismo, se pode dizer, foram uma constante histórica. Sempre estiveram presentes e por diversos motivos e interesses: teológicos, políticos, econômicos, organizacionais, culturais, de costumes, pessoais... Nem todas as divergências conduziram a cismas. Os momentos e motivos pelos quais ocorreram os cismas são, porém bastante bem recordados, principalmente pelas Igrejas ou instituições que nasceram destes cismas, pois nestes momentos se apóia fortemente a formação da própria identidade e da diferenciação frente ao outro. Esquecer este momento seria de certo modo esquecer o por quê do nascimento da própria identidade e independência como instituição.

Por outro lado não se pode deixar de observar que também foram uma constante no cristianismo os esforços pela manutenção da unidade institucional. Muitos destes esforços foram coroados de êxito – e talvez por isso esquecidos - muitos deles sem êxito porque não conseguiram evitar o cisma ou não conseguiram a reconciliação após uma divisão.

Um dos primeiros momentos de esforço por manter a união do grupo foi já no tempo apostólico, quando da controvérsia em torno da obrigatoriedade ou não da circuncisão para os que se convertiam a Jesus Cristo sem serem judeus (circuncidados). Paulo enfrentou várias controvérsias em suas comunidades, argumentando ser o Cristo o único para todos e o ponto em torno do qual deveria haver a união: "Exorto-vos, irmãos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo: Estais de acordo no que falais, e não haja divisões entre vós; antes, sede bem unidos no mesmo pensar e no mesmo sentir. Digo isto, irmãos, porque soube, pelos familiares de Cloé, que há discórdias entre vós. Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: ‘Eu sou de Paulo’, ‘eu sou de Apolo’, ‘eu de Cefas’, ‘eu de Cristo’. Está Cristo dividido? Acaso Paulo foi crucificado por vós, ou fostes batizados em nome de Paulo?” (1Cor 1,10-13).

Também no período pós-apostólico houve várias ocasiões de divisões e discórdias no ceio do Cristianismo. Os concílios da antiguidade (Niceia: 325; Constantinopla: 381; Éfeso: 431 e Calcedônia: 451) foram todos convocados para resolver controvérsias acerca da correta interpretação do ensinamento e significado de Jesus Cristo. Se por um lado os concílios representam esforço de conciliação, de manutenção da unidade, não são infelizmente raros os exemplos de que as decisões conciliares foram intolerantes com a facção derrotada, havendo excomunhões, banimentos e inclusive condenação à morte.

A Idade Média é em muitos casos exemplo de falta de compreensão e unidade, época de intolerância, de uso da violência por parte da Igreja e de condenações à morte e perseguições. Mas ao mesmo tempo também é a Idade Média que deu ao Cristianismo o irmão universal Francisco de Assis, o homem da fraternidade não só entre pessoas, mas com toda a criação. Na própria época de Francisco houve um esforço de entendimento da Igreja romana com a oriental. Diversas foram as tentativas formais de reunificação entre Ocidente e Oriente. De 1054 (data do cisma) até 1274 houve 10 tentativas formais de reunificação do Cristianismo[7]. Em 1274 realizou-se o 2º Concílio de Lião como um esforço de se encontrar um consenso entre ocidentais e orientais, sobretudo no que diz respeito à fórmula do credo em torno do Espírito Santo (a questão do Filioque). Chegou-se - no Concílio - a um acordo. Foi feita uma fórmula comum de fé sobre a questão da procedência do Espírito Santo.[8] Após a aceitação desta fórmula comum pelo imperador Oriental Miguel VIII Paleólogo em carta ao papa Gregório X, este proclama oficialmente a restauração da unidade entre Ocidente e Oriente. A unidade ficou, porém apenas no desejo, esbarrando, sobretudo na posição contrária do clero. Novo grande esforço pela unidade foi feito no século XV. O Concílio de Florença (1439-1445) havia sido melhor preparado que Lião e havia maior presença dos orientais. A fórmula comum sobre o Espírito Santo foi corrigida no sentido de ser mais precisa ("O Espírito Santo procede do Pai pelo Filho"). O resultado do Concílio foi novamente proclamar a restauração da unidade da Igreja, tanto entre gregos e latinos, como também se uniram os armênios, os coptas e etíopes, os sírios, os caldeus e os maronitas de Chipre. Apesar do esforço, não se conseguiu uma unidade de fato. A unidade ficou apenas no desejo. Na verdade já se haviam criado tradições eclesiais muito diferentes no Ocidente e no Oriente, de modo que o ato de reunificação ficou apenas no papel. Sobretudo o clero local e o povo não aceitou a unidade com Roma. Além das diferenças, os ressentimentos contra Roma eram de tal monta que impediam a unidade planejada e aceita pela elite das Igrejas[9]. A história conhece muitas outras tentativas de aproximação e unidade entre o cristianismo Ocidental e Oriental. Até hoje, porém, salvo algumas exceções, as duas tradições cristãs continuam desunidas.

À época das divisões surgidas no século XVI também aconteceram muitos esforços por superá-las. Cite-se, por exemplo o acordo entre católicos e luteranos de 1555, chamado de "Paz de Augsburgo" assinado pelo Imperador Carlos V. Por este acordo se conseguiu em parte diminuir as tensões que ocorriam dentro do Sacro Império Romano-Germânico entre adeptos das duas confissões: católica e luterana. Neste acordo foi estabelecido o famoso princípio cujus regio, ejus religio (conforme o rei, assim a religião) segundo o qual as pessoas deveriam aderir à opção religiosa do príncipe da sua região. Quem não o fizesse, teve um prazo para se mudar a uma região onde o príncipe tivesse sua opção. Este acordo que não teve longo vigor, especialmente por não ter incluído os anabatista e os calvinistas, mas que prova o esforço que existiu para se conseguir uma convivência religiosa. Da reforma do século XVI não surgira apenas dois blocos, mas muitos. Por um lado o bloco romano e por outro os chamados protestantes ou evangélicos (ou também reformados), dentre os quais os principais são os luteranos, os calvinistas e os anglicanos.

Antes de um movimento de reunificação com Roma, surgiram diversos movimentos de unificação do protestantismo, tendo sobretudo em vista a busca de uma base doutrinária e institucional comum. Estes movimentos não passaram porém de ideias e tentativas isoladas. Um esforço sério de união dos protestantes ficou sempre no desejo. Roma sempre viu a questão da união como uma questão de re-união com a Igreja de Roma: ou seja, a união com os protestantes passa pela "volta destes à mãe Igreja". Nos séculos seguintes à Reforma (XVII-XIX) sempre houve movimentos de reunificação. Ou seja, o cristianismo ocidental nunca se deu por satisfeito com as divisões. Os movimentos de reunificação eram porém quase que totalmente ignorados pelas respectivas instituições.

Foi apenas no século XIX, depois de já ter havido muitas divisões institucionais no ceio do cristianismo, que é acolhida pelas instituições a ideia ecumênica, isto é, a ideia de se trabalhar em conjunto, haver um relacionamento positivo entre as diversas Igrejas, de se desenvolver um trabalho intereclesial e conseguir um mínimo de unidade. Esta ideia - que chamamos hoje de ecumenismo - desenvolveu-se no início, como já vimos anteriormente, de forma independente das instituições. Era o povo mesmo trabalhando em torno da unidade.

O primeiro a expor a ideia de uma reunião de todos os cristãos foi Willian Carey, um ministro anglicano, que propôs para o ano de 1806 uma reunião para todos os cristãos, que deveria ocorrer na Cidade do Cabo. Infelizmente a ideia de Carey não se concretizou, mas foi já um indício da consciência ecumênica.

Em três campos surgem movimentos onde há participação de diversas Igrejas, podendo estes movimentos ser chamados de precursores do ecumenismo: o missionário, o de juventude e o das famílias confessionais.

Missionário: Os trabalhos de missionários cristãos em “países de missão” haviam se tornado um contra-testemunho cristão, pois as divergências dos países de origem eram também exportadas para os países de missão. Esta questão era visível e grave especialmente nas missões na África e na Ásia. A situação tornava-se aguda de uma forma mais clara na Índia. As diversas igrejas cristãs que missionavam na Índia eram tão divididas que a mensagem cristã sofria de credibilidade. Os missionários cristãos ali atuantes, anunciavam por um lado o Evangelho e sua lei do amor como mensagem salvadora, mas também transmitiam a desconfiança e malquerença frente aos cristãos de outras tradições. A divisão prejudicava a missão, pois para os destinatários isto era um contrassenso: anunciar pretensamente a mesma mensagem da importância do amor para o seguimento de Jesus Cristo, mas dizer que outros que anunciassem a mesma coisa eram falsos e enganadores.

Aos poucos surgem movimentos e organizações que tentam superar este problema. A primeira delas é, em 1804, a fundação da "British and Foreign Bible Society" com o objetivo de distribuir Bíblias nos países de missão (inclusive edições católicas). Começam a crescer contatos amigáveis nos países de missão, sobretudo entre protestantes e anglicanos. A fundação das "Sociedades Missionárias" foi aqui um passo importante. Tratam-se de sociedades que têm como finalidade a preparação de missionários a serem enviados a estes países. Membros de diversas denominações participam destes cursos de preparação para missionários. Estas organizações realizaram em 1854, na cidade de Nova Iorque, uma primeira conferência de sociedades missionárias. Outras reuniões se seguiram. Na reunião em Londres, no ano de 1878, já se fizeram presentes representantes de 34 sociedades missionárias protestantes e anglicanas. Dez anos mais tarde (1888/Londres) já eram 139 as sociedades missionárias presentes.

Nestas reuniões de missionários atuantes em outros países e culturas “aparece, dentro de suas limitações, um desejo que se manifesta como nunca antes ocorrera: precisa-se de cooperação, da possibilidade de testemunhar unanimemente o mesmo Senhor, de conhecer-se como Igrejas de maneira positiva e de apreciar os valores culturais que se encontram nos locais em que são implantadas Igrejas jovens”[10]. Estas reuniões levaram à reunião de Edimburgo (1910), da qual surge o processo que leva ao Conselho Mundial de Igrejas.

Juventude: Um segundo fator a se destacar aqui e que impulsionou o movimento ecumênico incipiente foram movimentos de juventude. No ano de 1844 fundou-se na Inglaterra a primeira Associação Cristã de Moços (ACM - YMCA, na sigla inglesa [Youth Men Christian Association] e logo também a versão feminina: ACMJ, [Associação Cristã de Mulheres Jovens]). A fundação destes movimentos é resultado do chamado “despertar evangélico” nos Estados Unidos e na Inglaterra. Logo apareceram diversas associações. Trata-se de grupos interconfessionais de jovens com o objetivo de fazer uma experiência interconfessional de Cristo. O Movimento se espalha também pelos EUA, sobretudo entre protestantes e anglicanos. A preocupação inicial destes movimentos não era a questão da aproximação ou do trabalho em conjunto entre as Igrejas, mas sim a missão evangelística entre os jovens. No ano de 1855 foi criada - numa reunião em Paris - a Aliança Mundial das Associações de Moços. A base para tais associações ficou assim definida: "As Associações Cristãs de Moços procuram unir aqueles moços que, considerando Jesus Cristo como seu Deus e Salvador, de acordo com as Sagradas Escrituras, desejam ser seus discípulos na sua doutrina e vida e associar os seus esforços para a extensão do seu reino entre os moços".

Outro movimento surgido com moldes semelhantes foi a Federação Mundial de Estudantes Cristãos no ano de 1898. Esta tinha como foco de atuação o testemunho cristão no mundo estudantil. Esta atingiu e influenciou numerosas universidades e faculdades de teologia norte-americanas e seu líder, John Mott, vai ter forte participação na organização do movimento ecumênico. Esta Federação tem um elemento interessante que é o envolvimento das Igrejas Ortodoxas. A primeira conferência nesta linha ocorreu em Constantinopla no ano de 1911. A parti dali ela se estrutura em muitos países de tradição ortodoxa coma Romênia, Bulgária, Sérvia, Grécia. Esta Federação também manterá laços com a organização estudantil católica “Pax Romana”, o que é uma novidade para a época. Mas o trabalho mais profícuo será em colaboração com as ACMs, que juntas desenvolvem trabalhos importantes durante as duas guerras mundiais e acolhimento de refugiados e imigrantes, organizações para estudos bíblicos e para a promoção das mulheres. Um forte elã missionário caracteriza estas associações.

A Igreja Católica mostra em geral grande desconfiança perante estes movimentos, sobretudo as ACMs, acusando-as de proselitismo. Em 1920, o Santo Ofício mandou uma carta aos bispos católicos pedindo que eles alertem os seus jovens a não participarem das ACMs. O movimento das ACMs teve grande sucesso (também no Brasil) e gerou ao redor do mundo estruturas como os albergues da juventude, que até hoje persistem. Mas como movimento, as ACMs declinou a partir da década de 1960.

Famílias confessionais: Um terceiro fator que pode ser contado como impulsionador do ecumenismo foi o fenômeno da agregação das chamadas famílias confessionais, isto é, a agregação em organismos mundiais das diversas Igrejas de uma mesma confissão. Quem iniciou este movimento de agregação, foram os Anglicanos. A reunião das Igrejas anglicanas ocorreu em 1867, na Conferência de Lambeth. Havia um temor por parte de diversas Igrejas anglicanas, que a Conferência de Lambeth iria servir de pretexto para a criação de uma espécie de papado para os anglicanos. Este temor era infundado. Através de um organismo de união dos anglicanos, foi sendo organizada a base doutrinária do anglicanismo.

Os luteranos começaram este processo de união em 1868, com a criação da Conferência Geral Evangélica Luterana da Europa. As Igrejas Luteranas norte-americanas fundaram em 1918 Conselho Nacional Luterano. E finalmente em 1927 foi criada a Convenção Mundial Luterana, que a partir de 1947 mudou de nome e chama-se até hoje Federação Luterana Mundial. A FLM é muito engajada no ecumenismo. A IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil) é membro ativo da federação.

O processo de união dos reformados ocorreu em 1875 com a criação da Aliança das Igrejas Reformadas (Presbiteriana). Em 1881 criou-se a Conferência Ecumênica Metodista, que a partir de 1951 se chama Conselho Metodista Mundial. A União dos Vétero-Católicos de Utrecht vai ocorrer em 1889. Em 1891 é fundado o Conselho Internacional Congregacional. As Igrejas batistas uniram-se em 1905 criando a Aliança Batista Mundial.

Vê-se, pois que a união das Igrejas de uma mesma família em um organismo mundial foi um verdadeiro fenômeno a atingir quase todas as famílias confessionais. Estes organismos de unidade não são super-Igrejas, mas organismos de intercâmbio. Eles representam um passo importante e mesmo que não sejam entendidos necessariamente como organismos ecumênicos, sua atuação se dá no diálogo intra-confessional.

Neste contexto de movimento de diversas Igrejas que buscam um trabalho ou projetos em comum, há de se citar um caso interessante e talvez único, que é o da Unidade no sul da Índia: Trata-se de um fato importante neste caminho de busca de unidade entre as igrejas cristãs ocorreu na Índia, com a união institucional de diversas Igrejas do sul do país. Esta união ocorreu em 1947, após longas negociações. Participaram da união os anglicanos, os presbiterianos, os congregacionais e os metodistas. Os luteranos e batistas haviam participado das negociações, mas acabaram não se unindo. Quatro pontos formam o consenso básico para a união: Sagrada Escritura, credos da Igreja antiga, batismo e santa ceia e episcopado histórico.

Estes elementos acima citados vão caminhar para a fundação do organismo que representa por excelência o esforço estruturado pela unidade dos cristãos: o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). O trabalho que deu no movimento que chamamos hoje de ecumenismo representado pelo CMI teve um marco inicial importante com a reunião de Edimburgo no ano de 1910. Foi uma reunião dos missionários protestantes, por perceberem que a transferência das controvérsias cristãs para as terras de missão se constituía um verdadeiro escândalo para os missionados. As reuniões das Sociedades Missionárias ocorridas por diversas ocasiões havia já mostrado a necessidade de se mudar esta situação. Estes reuniões eram, porém esporádicas e feitas a título particular. Os participantes compareciam por interesse próprio, mas não como representantes de sua Igreja. A partir da constatação da necessidade de um testemunho comum, mesmo em diferentes instituições, foi sendo preparada a Conferência de Edimburgo. Esta foi longamente planejada e a participação deu-se por delegados enviados pelas diversas Igrejas. As decisões tomadas em Edimburgo não tinham valor jurídico para as Igrejas; criaram, entretanto um compromisso moral. A partir desta reunião foi decidido criar um organismo permanente de diálogo. Criou-se o Conselho Internacional de Missões. Este foi um primeiro organismo ecumênico permanente, surgido formalmente apenas após a 1ª guerra mundial, em 1921. Este Conselho organizou diversas conferências internacionais ao longo de sua história. Quando em 1947 já havia o movimento para se fundar o Conselho Mundial de Igrejas, havia a ideia de uma integração do Conselho Internacional de Missões neste novo órgão nascente. Nem todas as Igrejas que participavam do movimento missionário viam, porém com bons olhos uma associação de todas as Igrejas. Assim, pois, apenas em 1961 o Conselho Internacional de Missões se integrou totalmente no CMI, passando a ser a Comissão de Evangelização e Missão deste.

A reunião histórica de Edimburgo (1910) não quis explicitamente tratar de questões de doutrina e interpretação de fé, nem de estruturas eclesiais. Mas houve quem tivesse feito um grande esforço para isto, por entender que o principal problema de desentendimento entre as Igrejas seja justamente o das diferentes interpretações. Um acordo sobre questões de fé seria - para este grupo - um grande avanço para as Igrejas. Logo após a 1ª guerra, este grupo começou a reunir esforços para uma tal discussão. Um comitê organizador percorreu toda Europa, convencendo as Igrejas da importância de tal intento. Finalmente em 1927 aconteceu em Lausana (Suíça) a primeira reunião do movimento que se chamou "Fé e Constituição" (ou Fé e Ordem). Presentes estavam 394 pessoas, membros de 108 diferentes Igrejas, sem serem, porém, delegados oficiais de suas Igrejas. Por parte da Igreja católica houve a proibição da Santa Sé de que alguém de suas fileiras participasse da reunião. Os grupos mais significativos presentes eram os anglicanos, ortodoxos e luteranos. Os resultados desta reunião não foram muito expressivos. Mas foi resolvido criar um grupo para dar continuidade aos trabalhos. Este organizou a 2ª Conferência de Fé e Constituição em 1937, na Escócia (Edimburgo). Esta teve um caráter mais amplo que a primeira e os participantes eram enviados oficiais de suas Igrejas. 123 Igrejas enviaram oficialmente delegações. Participaram cinco membros da Igreja Católica Romana; não como delegados, mas a título de observadores. Nesta conferência, "os temas fundamentais foram a graça, a relação entre Igreja e Palavra e entre ministério e sacramentos, a unidade da Igreja na vida e no culto"[11]. Quando da criação do CMI (1948), o Movimento Fé e Constituição não se integrou totalmente de imediato neste. Isto veio a acontecer na Conferência de Lund (Suécia) em 1952. Para esta Conferência a Igreja católica mandou observadores oficiais.

Juntamente com o movimento ecumênico no campo missionário e no doutrinário, também nascera a preocupação com a necessidade de uma ação comum de Igrejas cristãs, principalmente como promotoras da paz. Em 1914 fundou-se a Aliança Universal para a Amizade entre as Igrejas. A guerra então incipiente adiou os planos de ação deste grupo. Após a guerra, surge no campo da comunhão entre as Igrejas a figura do arcebispo luterano da Suécia Nathan Söderblom. Este foi o impulsionador da "Conferência Cristã pela Paz" realizada na Holanda em 1919. Durante esta conferência, Söderblom lançou a ideia de haver um Conselho Ecumênico das igrejas cristãs, com o objetivo de ser "a voz da consciência social do mundo".  Seis anos mais tarde (1925) nascia o Movimento Vida e Ação. Em sua primeira reunião (Estocolmo/Suécia) estavam presentes 607 delegados, vindos de 37 países. Pela primeira vez os ortodoxos se fizeram presentes a uma tal reunião. A Igreja católica não participou. Temas desta reunião de Estocolmo eram, sobretudo questões práticas como questões sociais, questões morais, de família, juventude, sexualidade, educação, racismo, etc. Este movimento teve continuidade em diversas conferências. Da reunião do Movimento Vida e Ação realizada em 1937 em Oxford (425 participantes) nasceu um primeiro grupo para trabalhar na criação de um Conselho Ecumênico de Igrejas.

A primeira reunião em vistas da fundação do Conselho Mundial de Igrejas ocorreu em Utrecht (Holanda) no ano de 1938. Presentes a esta reunião estavam representantes dos organismos ecumênicos já existentes: Vida e Ação, Fé e Constituição, Conselho Internacional de Missões, Aliança Universal para a Amizade entre as Igrejas, Aliança Mundial das Associações de Moços, Aliança Mundial das Associações Cristãs Femininas e Federação Universal dos Movimentos Estudantis Cristãos. Fixaram-se os pontos básicos para um futuro Conselho Mundial: não uma super-igreja, mas uma associação fraternal. A base teológica para o conselho foi assim definida em sua fundação: "O Conselho Mundial de Igrejas é uma comunhão de igrejas que aceitam nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador"[12]. A irrupção da II guerra mundial adiou o processo, de modo que a assembleia fundacional pode ocorrer somente em 1948, numa reunião que teve lugar em Amsterdã. Fizeram-se presentes à assembleia fundacional do Conselho Mundial de Igrejas 351 delegados, representantes de 147 Igrejas, vindos de 44 países diferentes. Como a Igreja católica não havia atendido a convites anteriores, não foi convidada oficialmente para participar do Conselho. Foram convidados, porém, alguns teólogos católicos. Em vista disto, o Santo Ofício publicou uma advertência, proibindo a participação de católicos no evento. Alguns sacerdotes católicos se fizeram presentes, participando como jornalistas. Os ortodoxos também não estavam muito representados. Isto se deve ao contexto da guerra fria vivida na época. Os países do leste europeu coibiram a participação de membros daquelas Igrejas.

Na fundação ficou definido que o CMI faria uma assembleia geral a cada 7 anos. Na assembleia de 1961, em Nova Deli, 4 Igrejas ortodoxas aderiram ao CMI (russa, búlgara, romena e polonesa). Igreja católica mandou, pela primeira vez, cinco "observadores oficiais". Nesta assembleia foi aprovada uma nova base constitutiva do CMI: "O Conselho Mundial de Igrejas é uma associação fraterna de Igrejas, que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador, segundo as Escrituras, e que se esforçam para responder conjuntamente a sua vocação comum, para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo"[13].

Desde o início da reflexão sobre a possibilidade da criação de um Conselho Mundial de Igrejas, um grupo de Igrejas conservadoras iniciou um movimento de oposição a esta tendência ecumênica. Este movimento também criou em 1948 um organismo, o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs. Trata-se de um movimento que rejeita qualquer colaboração com a Igreja católica e é contrário à orientação social do CMI.




[1] Ver exemplo da situação política conturbada em J. Hortal, E haverá um só rebanho, p. 28.

[2] Como tradição também se entendem as decisões dos Concílios. Com isso fica claro que Lutero não assume as decisões conciliares como matéria de autoridade da fé.

[3] J. Bosch Navarro, Para compreender o Ecumenismo, p. 73.

[4] Hortal, J. E haverá um só rebanho...p. 66.

[5] Por causa da observância do sábado, são também às vezes chamados de “sabatistas”.

[6] A obra literária da Senhora White é muito extensa, atingindo mais de 100 títulos, traduzidos já para  a língua portuguesa.

[7] Cf. J. Hortal, E haverá um só rebanho, p. 159.

[8] Fórmula comum sobre a procedência do Espírito Santo do 2o Concílio de Lião: "Com profissão devota e fiel, confessamos que o Espírito Santo procede eternamente do Pai e do Filho, não como de dois princípios, mas como de um único princípio, e não por duas espirações, mas por uma única espiração: é isto o que até agora professou, pregou e ensinou e o que firmemente tem, prega professa e ensina a Santa Igreja Romana, mãe e mestra de todos os fiéis; e é isto o que se contém na sentença imutável e verdadeira dos Padres e doutores ortodoxos, tanto latinos quanto gregos".

[9] "Chegava-se a dizer que era preferível ver reinar sobre Constantinopla o turbante dos turcos do que a mitra dos latinos". J. Hortal, E haverá um só rebanho, 161.

[10] NAVARRO, J. Bosh. Para Compreender o Ecumenismo... p. 123.

[11] J. Hortal, E haverá um só rebanho, p. 186.

[12] NAVARRO, J. Bosh. Para Compreender o Ecumenismo... p.135.

[13] NAVARRO, J. Bosh. Para Compreender o Ecumenismo... p. 135.