Religiões Afro-brasileiras - Cap. 3 |
Escrito por Volney Berkenbrok |
Seg, 16 de Abril de 2018 18:44 |
Capítulo 3. Formações religiosas afro-brasileiras
3.1 Resquícios dos inícios das religiões afro-brasileiras Atualmente não mais se podem obter informações exatas sobre o início de práticas de tradições religiosas africanas no Brasil. O que se pode dizer com certeza é que os escravizados tentaram continuar suas culturas no Brasil e com isso suas religiões. Quais religiões e em que medida elas foram praticadas, isto é desconhecido. Este desconhecimento deve-se, sobretudo ao fato de não ter havido na época interesse em observar estas práticas religiosas. O comportamento religioso dos escravizados foi notado, não foi, porém observado como sendo um comportamento religioso. Da parte dos negros houve continuidade de tradições, mas não ficou da parte deles material escrito a respeito que possibilite uma pesquisa. Os materiais escritos que foram conservados desta época e que testemunham a existência destas práticas religiosas, as mencionam apenas de passagem e por outros motivos. Estas práticas religiosas são mencionadas em três tipos de fontes: em textos literários, em documentos da administração pública (especialmente boletins policiais) e em relatórios de viajantes. São fontes que observam e citam as práticas religiosas sempre a partir de um ponto de vista bem determinado. Nestas citações não há a preocupação de mostrar as práticas religiosas como um todo. São destacados apenas alguns aspectos que aparecem como interessantes para o ponto de vista do observador. Três temas são preferidos por estes observadores: a morte, a magia e o culto. O comportamento dos negros diante da morte de um companheiro despertava o interesse dos brancos. A cerimônia católica era ponteada com elementos africanos. Um dos testemunhos mais antigos de práticas religiosas africanas no Brasil é o texto de uma denúncia que Sebastião Barreto fez em 1618 à Inquisição, quando da sua visitação na Bahia. Segundo esta notícia, os negros haviam matado animais quando de um enterro e lavado o morto com sangue, pois teriam afirmado que "nesse caso a alma deixa o corpo para subir ao céu". Em outras descrições de ritos fúnebres chamou a atenção que os negros entoavam cantos acompanhados de tambores e chegavam às vezes até a fazer danças. Embora tais menções sejam superficiais, elas deixam transparecer que se tratava de rituais e não de atitudes espontâneas. Além disso mostram a presença de diferentes práticas religiosas por ocasião de um rito fúnebre de africanos no Brasil. Um segundo tema, do qual muitos documentos da época da escravatura falam e onde aparece a presença de práticas religiosas de origem africana, é a questão da magia. O tema aparece muitas vezes tanto nos relatos de viajantes, como nos boletins policiais e nos documentos da Inquisição. Muitos portugueses supersticiosos não apenas ficavam assustados com as práticas religiosas dos africanos, senão também fascinados. Num país onde o número de médicos e farmacêuticos era muito baixo e especialmente no campo, onde não se podia esperar qualquer ajuda da medicina e reinava a insegurança, a ajuda dos africanos com seus ritos e ervas era muito bem-vinda em caso de doenças. Por outro lado os portugueses observavam estes ritos com muita desconfiança e muitas vezes os classificavam como feitiçaria. Isto levava a perseguições policiais, pois a prática de feitiçaria era proibida pela lei portuguesa. A atitude dos portugueses diante dos africanos que utilizavam ritos e ervas para ajudar na recuperação da saúde era muito dúbia. Muitas vezes esta ajuda foi aceita de forma agradecida como a única possível e os que a praticavam gozavam de boa reputação, especialmente no campo. Nos ambientes urbanos estas práticas africanas foram combatidas, especialmente pelo clero. Os brancos procuravam a ajuda dos africanos não apenas para questões relativas a problemas de saúde. Os meios mágicos africanos também foram buscados para resolver questões amorosas, combater rivais, ajudar na procura de felicidade na vida e proteger contra perigos. A avaliação destas práticas africanas era feita segundo uma regra muito simples: tiveram elas o efeito desejado, eram boas e os que as exerciam foram recompensados; não tiveram elas o efeito buscado, foram classificadas como feitiçaria e coisa do demônio e os que a exerciam foram condenados. Assim, o soldado Antônio Rodrigues recebeu do rei Dom João VI uma pensão de 40 $, por ter curado pessoas com a ajuda de determinadas palavras cheias de força, enquanto a negra Luiza Pinto foi condenada a quatro anos de prisão por causa de feitiçaria e um pretenso pacto com o demônio. A mesma atitude que marcava a posição dos brancos em relação aos negros na sociedade brasileira também aparece nestes casos de praticas curativas: os negros estão a serviço dos brancos. Na tradição africana, a utilização destas práticas curativas era vista como integrante da prática religiosa. A cura do corpo era acompanhada pela saúde espiritual e as duas coisas eram englobadas pela religião. Os brancos sabiam muito bem que os métodos curativos dos negros tinham uma dimensão religiosa. Esta consciência levou muitos a se apresentar perante os inquisidores e confessar que haviam se deixado tratar por métodos mágico-religiosos. Nos textos da Inquisição aparecem muitos casos, onde pessoas confessam ter lançado mão de tais usos ou casos de pessoas que são denunciadas por utilizar ou ensinar tais práticas. Estas denúncias ou confissões deixam transparecer claramente que os negros praticavam suas religiões neste tempo - especialmente no que diz respeito a curas - e que os brancos tinham consciência de que se tratava de práticas religiosas. Os materiais sobre cultos africanos do tempo da escravização não são tão ricos como os sobre a morte e a magia. Isto se deve ao fato de que os rituais fúnebres eram públicos e a chamada magia atraia a atenção de muita gente. Os cultos, ao contrário, eram secretos e seus praticantes não estavam interessados que o público tomasse conhecimento de sua existência. Os documentos que fazem referência a tais cultos são diversificados. Um dos testemunhos mais antigos é um quadro pintado por Zacharias Wagner que viveu no Brasil no tempo da ocupação holandesa entre 1634 e 1641. O quadro é acompanhado por uma explicação: Quando os escravos têm executado, durante a semana inteira, a sua penosíssima tarefa, lhes é concedido o Domingo como melhor lhes apraz; de ordinário se reúnem em certos lugares e, ao som de pífanos e tambores, levam todo o dia a dançar desordenadamente entre si, homem e mulheres, crianças e velhos, em meio a frequentes libações (...) a ponto de muitas vezes não se reconhecerem, tão surdos e ébrios ficam (BASTIDE, 1989, p. 192). R. Ribeiro, que examinou o quadro, afirma: À simples inspeção (desta gravura) qualquer pessoa familiarizada com os cultos afro-brasileiros do Recife reconhecerá ali uma roda de Xangô: o mesmo círculo de dançarinos a se movimentar para a esquerda com as atitudes coreográficas características; idêntica posição dos ogan-ilu a tocarem dois atabaques do tipo comum em toda a África Ocidental e um agogô; a jarra de garapa ao lado dos tocadores; a mesma posição e atitude do sacerdote. Chegavam a não 'se reconhecer' não porque estivessem 'tão surdos e ébrios' e sim por estarem possuídos por seus deuses (ficarem no santo), condição psicológica que naturalmente o artista ignorava (BASTIDE, 1989, 192). O escritor Gregório de Mattos testemunha através de uma sátira do século XVII, que também brancos participavam das rodas rituais africanas: Quantos quilombos existem Com senhores superlativos Onde a noite se ensinam Calundus e fetichismo Mil mulheres Os frequentam com devoção Do mesmo modo que homens barbados Que se consideram novos Narcisos (...) O que digo é que nessas danças Satã tem parte ligada, Que somente esse senhor cúmplice Pode ensinar tais delírios.
A participação de brancos nestes cultos dos negros não ocorria necessariamente por interesse de pesquisa ou religioso, mas também por motivos inferiores, como diz R. Bastide. A fascinação que exerciam estes cultos é certamente um forte motivo para explicar a presença dos brancos. Somente alguns tipos de cultos permitiram porém a presença de brancos, e mesmo assim somente como espectadores. A ideia de que cultos de influência africana estavam ligados ao demônio também aparece em vários relatos da época. E isto era motivo de perseguição policial, pois tais cultos eram proibidos pela lei portuguesa. Depois da proclamação independência do Brasil (1822) a situação deveria teoricamente ter mudado. A ideia de liberdade religiosa - chegada ao Brasil vinda, sobretudo da França e dos Estados Unidos - influenciou o primeiro projeto de constituição brasileira, que previa liberdade de culto a todas as confissões cristãs. As outras religiões deveriam ser toleradas. O imperador porém dissolveu a Assembleia Constituinte e na Constituição por ele outorgada a liberdade religiosa é limitada. A Igreja Católica Apostólica Romana permanece a religião do império. A prática de todas as outras religiões é permitida em seu culto doméstico ou particular em casas para este fim, desde que não tenham um aspecto exterior de templo. Esta liberdade era pensada, porém em relação aos protestantes e judeus, pois o país estava interessado em negócios com eles. Não se pensava em liberdade religiosa para os negros. O chamado fetichismo foi tolerado pelo código penal de 1831, desde que fosse praticado apenas dentro das senzalas e nunca em templos públicos. O artigo 179 do código penal definia: "Ninguém pode ser perseguido por razão religiosa, uma vez que respeite o Estado e não ofenda a moral pública". Se o Estado era respeitado e a moral pública não fora prejudicada, isto dependia de interpretação de caso para caso. Em uma época em que eram comuns revoltas de escravizados, não era difícil ver em qualquer reunião de negros uma ameaça ao Estado. A perseguição policial a cultos africanos continuou pois após a independência da mesma forma como antes desta, apesar da liberdade religiosa garantida pela constituição. Ordens policiais e decretos de cidades mostram que estes grupos religiosos continuaram a existir apesar de perseguição. A cidade de Campinas, por exemplo, decretou no ano de 1876: "A casas conhecidas vulgarmente sob o nome de Zangus ou batuques estão proibidas 30 $ de multa “. Estes documentos não nos fornecem entretanto nenhuma informação sobre a prática da religião em si, sobre o número de adeptos ou sobre sua organização. Já relatos de viajantes contêm mais detalhes: que os negros através de suas reuniões religiosas queriam descobrir a origem duma certa doença, que eles procuravam coisas perdidas através do culto, que eles rezavam para obter sucesso, que existiam alianças secretas. Estes relatos veem porém as reuniões religiosas dos negros a partir do ponto de vista que pretende acentuar o exótico e o erótico. Através destes relatos é possível não apenas afirmar com certeza ter havido nesta época práticas religiosas dos africanos no Brasil, mas em alguns relatos pode-se inclusive identificar a que tradição estas práticas pertenciam. Mas disto não se pode concluir logo que se tratava de comunidades religiosas estáveis, que tenham tido uma continuidade até as comunidades de hoje. Uma organização religiosa mais estável dos negros só foi possível no último período antes da abolição da escravatura e no início da república. Nesta época os negros acorreram em massa às cidades, tanto como escravizados fugitivos em busca da liberdade, como também ex-escravizados que buscavam na cidade chances de sobrevivência praticamente inexistentes no campo. Estes se encontravam nas periferias das cidades e puderam assim pela primeira vez no Brasil - sem levar em conta os quilombos - organizar comunidades que não fossem sob a tutela dos brancos. Neste ambiente é que cresce o número de comunidades religiosas de tradições africanas. Tradições africanas vão aqui se reencontrando. O tempo da escravização não conseguira erradicar estas tradições, mas elas também não havido sobrevivido sem incorporar influências religiosas outras, sobretudo advindas do catolicismo. Não ocorreu porém na sociedade de então uma acolhida destas comunidades religiosas afro-brasileiras nascentes, apesar da liberdade de religião garantida pela constituição e do catolicismo não mais ser a religião oficial do Estado. As comunidades afro-brasileiras passaram agora a ser perseguidas não mais em nome do fetichismo ou por representarem um perigo ao Estado, mas sim em nome do patriotismo. A chamada ideologia do branqueamento (ou embranquecimento) fornecia agora os argumentos contra os negros e seus costumes. Desde a independência mas, sobretudo na segunda metade do séc. XIX (imigração de muitos europeus) o Brasil tentava se apresentar-se no cenário mundial como um país de brancos, um país de descendentes de europeus, imagem esta apresentada tanto interna como externamente. Tudo o que estava ligado à cultura de brancos era bom, tudo o que estava ligado à cultura de índios ou africanos, não era bom e precisaria ser evitado. Isto levou à situação, na qual até os negros começaram a ver sua própria tradição como sendo de menor valor, tentando assim assumir valores de brancos. Esta ideologia do branqueamento (ou do embranquecimento) deixou vestígios até hoje na sociedade brasileira. A existência de tradições africanas era considerada prejudicial ao país. O que porém a escravização e a catolicização forçada dos negros não havia conseguido - fazer com que suas tradições religiosas fossem esquecidas - também esta pressão ideológica e a perseguição policial não iria conseguir. A esta altura da história, não se pode mais porém falar simplesmente em tradições religiosas africanas. A história havia deixado suas marcas, também no que tange a religião, de modo que não se pode mais falar em religiões africanas no Brasil, mas sim de religiões afro-brasileiras. Nas periferias das cidades foram se formando comunidades religiosas, ora marcadas mais por uma tradição religiosa africana, ora por outra. Estas comunidades parecem ter do ponto de vista religioso duas coisas em comum: a origem africana e o acolhimento de elementos sincréticos. Mas ao mesmo tempo, como a combinação destes elementos pode resultar em sistemas religiosos múltiplos, as tradições religiosas chamadas afro-brasileiras apresentam um espectro diverso e rico, onde nomenclaturas por vezes não abarcam necessariamente esta totalidade. A título apenas de uma visão geral, listamos algumas destas tradições – mais conhecidas – com sua localização inicial e alguma característica.
3.2 A geografia da reorganização das religiões de matriz africana no Brasil A história da formação das religiões afro-brasileiras transcorreu de forma diversa nas diferentes regiões do Brasil. Esta diversidade se deve a muitos fatores: a presença de diversas tradições religiosas africanas; as condições sob as quais estas tradições foram preservadas não foram as mesmas; as religiões com as quais elas se encontraram portaram-se de forma diversificada, etc. Todos estes fatores tiveram como consequência a formação de diversas sínteses religiosas, de modo que se costuma falar no plural em religiões ou cultos afro-brasileiros. Também se tornou usual a expressão “religiões de matriz africana” para indicar estas tradições religiosas. Independente da expressão que se use, é importante perceber a realidade para a qual elas apontam: o fato de existirem tradições religiosas que se formaram a partir das religiões trazidas ao Brasil pelos escravizados, tendo conhecido desenvolvimentos diversos em terras brasileiras. Ademais, este mundo religioso sempre foi e continua sendo bastante dinâmico. As diferenças entre estes grupos são em muitos casos tão grandes que se pode falar corretamente em diferentes religiões ou sistemas religiosos. Outros grupos estão mais próximos uns dos outros e têm o mesmo núcleo de compreensão religiosa do mundo. O desenvolvimento ocorrido, por exemplo, na Umbanda é típico para o surgimento das religiões afro-brasileiras; e além do mais, do ponto de vista de adeptos, a Umbanda é a maior dentre as religiões afro-brasileiras. Uma outra religião afro-brasileira - o Candomblé - será apresentada adiante com mais detalhes. Queremos aqui dizer também uma palavra sobre as outras religiões afro-brasileiras talvez menos conhecidas, mas que compõem uma espécie de mosaico neste rico campo resultante do encontro no Brasil de tradições religiosas africanas (ou parte delas, devido à escravização) e outros sistemas religiosos. Por isso daremos agora algumas informações sobre a localização e características de outras religiões afro-brasileiras. a) Região Norte: Pajelança, Encantaria e Catimbó No norte do Brasil surgiram religiões afro-brasileiras, marcadas pela influência de elementos religiosos da tradição indígena. Elas são conhecidas por Pajelança (Pará e Amazonas), Encantaria (Piauí) ou Catimbó. Nestas religiões, o culto é incumbência do líder religioso e os adeptos são quase que visitantes que apenas o procuram quando se faz necessário por causa de alguma dificuldade. Não existe uma comunidade religiosa em si no sentido de assembleia que se reúne permanentemente. “A pajelança [...] é uma forma de xamanismo em que se dá a ocorrência do fenômeno da incorporação pelo pajé, sendo seu corpo tomado, no transe ritual, por entidades conhecidas como encantados ou caruanas” (MAUÉS; VILLACORTA, 2004, p. 11). Esta tradição religiosa está bastante ligada a práticas de cura, por isso seus praticantes preferem muitas vezes serem chamados de curadores e não de pajés. Daí a expressão pajelança também não ser necessariamente assumida pelos seus praticantes e mais utilizada por estudiosos. Por vezes é também confundido com a pajelança indígena. O elemento religioso central desta tradição é a fé nos encantados. Estas figuras têm origem tanto em narrativas indígenas, como católicas (europeias) e africanas. Elas se manifestam em sessões que podem ser públicas ou privadas e sua manifestação tem geralmente propósitos claros como o de combate a doenças ou desordens. A interpretação da atuação destas forças recebe explicações ora de matriz indígena, ora africana, ora cristã-ibérica e – nos últimos tempos – também de elementos de nova era. A tradição indígena da figura do Pajé como responsável pelas atividades religiosas mostra sua influência também na estrutura do Catimbó, presente tanto na região Norte como Nordeste. A liderança religiosa bem como a liturgia limita-se a poucos elementos e o culto é praticado na própria casa do catimbozeiro. Os rituais do Catimbó diferenciam-se de outras tradições africanas especialmente pela ausência de danças ou atabaques e pelo uso de certas substâncias (principalmente o tabaco e a Jurema) para provocar o transe. Também nesta tradição é comum que seja aplicada em função terapêutica. Muito conhecidas são as defumações feitas em pessoas para que sejam libertas de males ou então protegidas contra os males. Bastide é da opinião que “o catimbó não passa da antiga festa da jurema, que se modificou em contato com o catolicismo, mas que, assim transformada, continuou a se manter nas populações mais ou menos caboclas, nas camadas inferiores da população do Nordeste” (2004, p. 148). O fato desta liderança religiosa também poder ser assumida por mulheres, parece uma clara influência africana, pois a tradição indígena não conhece mulheres na liderança religiosa. “Se o negro pode aceitar o catimbó com tanta facilidade é porque encontrou nele a mesma estrutura mística existente em sua religião, a mesma resposta às mesmas tendências” (BASTIDE, 2004, p. 149). A doutrina está baseada, sobretudo em dois pontos: a jurema e o mundo dos encantados. Jurema é uma planta. Segundo a tradição, quando da fuga para o Egito, Maria escondeu o menino Jesus numa Jurema em sua fuga para o Egito e desde então esta planta é portadora duma força divina. Suas raízes são utilizadas na invocação dos espíritos. Trata-se de uma planta de uso ritual classificada como enteógena (aquela capaz de chamar ou invocar divindade). No estado de transe, a pessoa entra em contato com o mundo dos encantados, que pode ser dividido em diversos reinos, estados e comunidades, cada qual com seus guias. Estes guias são em sua maioria espíritos de índios falecidos, mas também de africanos, santos da Igreja Católica ou figuras bíblicas. O culto centraliza-se na invocação destes espíritos ou forças com a ajuda da jurema. Apesar da grande diferença, sobretudo mitológica entre as tradições indígenas e as africanas, os africanos identificaram-se com esta religião, atraídos especialmente pela invocação de seres espirituais. Mais tarde a Jurema irá se expandir em direção tanto ao sudeste, onde pode ser encontrada especialmente no estado de São Paulo e para o nordeste, onde na região do Recife pode ser encontrada em união com outra tradição, constituindo o Catimbó-Jurema do Recife. A encantaria no norte do Brasil assumiu também por vezes elementos lendários da tradição portuguesa, como as de Dom Sebastião, rei de Portugal morto ainda jovem numa batalha contra os mouros no norte da África (meados do século XVI), o que fez gerar a lenda de que ele não morrera, encantara-se e voltaria algum dia com seus exércitos para libertar o povo do domínio estrangeiro. Este Dom Sebastião encantado passa a incorporar na encantaria, mostrando um trânsito mítico entre tradições africanas e portuguesas. Em outros locais do norte brasileiro sobreviveu das tradições africanas apenas a dança de invocação dos espíritos; espíritos estes que são uma mistura entre figuras indígenas, africanas e católicas. A comunidade se reúne apenas de quando em quando para realizar esta dança. Não há mais uma pessoa específica que conduz o culto e as atividades religiosas. A tradição é mantida pelo grupo de pessoas e a fronteira entre comunidade religiosa e o que se poderia chamar de grupo folclórico não é mais claramente definida. A entrada dos negros nestas tradições religiosas – assumindo inclusive posições de comando – irá acontecer por muitos motivos. Bastide aponta tanto para motivos sociais (subir na sociedade e liderar um grupo), como mágico-religiosos (o manejo com poderes especiais) ou então a relação com os espíritos (lembrando a tradição africana). E conclui: “Contudo, a saudade da África continua a viver em seus corações. A elevação social, a posse dos segredos da jurema não curam a cicatriz interior, não abafam o remorso lancinante, o sentimento de ter cometido uma traição para com seus ancestrais” (2004, p. 158). b) O caso Maranhão: A Casa de Mina ou Tambor de Mina e o Terecô No Nordeste brasileiro, precisamente no Estado do Maranhão, sobreviveu outra tradição religiosa afro-brasileira, com o surgimento da chamada Casa de Mina ou Tambor de Mina. A denominação Mina, na expressão, tem por origem não um determinado grupo cultural, mas se refere à fortificação de São Jorge da Mina, por africano através do qual foram embarcados muitos escravos para o Brasil (se trata hoje da cidade de Elmina, localizada em Gana). O núcleo desta religião afro-brasileira é formado pelas tradições religiosas ioruba e dahomeana. A rica e complexa teologia destas tradições foi mantida. Juntaram-se a ela elementos de religiões indígenas e do catolicismo. Assim na Casa de Mina são festejadas as "três noites dos caboclos" e no mês de maio há o costume de por vezes acrescentar orações católicas ao culto. Mas a Casa de Mina é em geral marcada pela sua fidelidade às tradições africanas, tanto no que diz respeito ao culto, como a teologia ou hierarquia. Um tempo de iniciação bem organizado é responsável pela preservação e transmissão das tradições. Sua estrutura religião é marcada por um lugar fixo como centro da comunidade, ao estilo do Ilê (terreiro) do Candomblé. A Casa de Mina não é uma religião afro-brasileira que tenha se expandido extraordinariamente, mas por conta de migrações, se pode encontrar suas influências em diversos lugares do país, especialmente para dentro da Amazônia. A migração de maranhenses no ciclo da borracha, levou o Tambor de Mina, por exemplo, para Rondônia, onde foi chamada também de Tambor de Averequete, por ser este uma entidade que incorpora nesta tradição religiosa. Se a Casa de Mina é uma tradição religiosa afro-brasileira que marca a capital do estado do Maranhão, especificamente a Ilha de São Luís, no interior há uma outra chamada de Terecô. A partir da cidade de Codó, o Terecô se expandiu tanto para outras regiões do estado, como para outros estados do país. Teria surgido através de escravizados das fazendas de algodão de Codó e região. Esta é uma tradição de influência africana tanto iorubana (jeje e nagô) como, sobretudo da cultura banto (angola e cambinda), bem como outras influências religiosas. M. Ferreti chama “a atenção para a integração ocorrida no terecô entre religião e curandeirismo, para a influência atual da umbanda e quimbanda” (2004, p. 62). As lideranças religiosas são também curadores ao estilo catimbozeiro, o que indica influência indígena. No culto, mesmo sendo conhecidas entidades espirituais da tradição jeje-nagô, os transes ocorrem o mais das vezes com entidades da mata ou figuras sincretizadas com santos da tradição católica. As atividades do terecozeiro são mais curativas que rituais. Seguindo muitas outras tradições de influência africana, no terecô há também a crença em entidades espirituais, com as quais acontece interação ritual. As entidades no terecô são organizadas em famílias, ou seja, ela são entendidas como aparentadas entre si. A maior delas é o chamado Légua Boji Buá da Trindade. Na narrativa mitológica seria um guerreiro filho de Dom Pedro Angasso e Rainha Rosa. Mas também é apresentado como preto velho angolano. Esta figura é controversa e aparece (com pequenas diferenças) em casas de diferentes tradições no estado do Maranhão. No terecô ele aparece nos transes como entidade da mata, mata que também seria origem de entidades espirituais, comandadas por Maria Bárbara Soeira, uma entidade associada a Santa Bárbara. Este processo de interinfluências religiosas é algo dinâmico e M. Ferreti afirma que “nos últimos tempos, muitos terreiros de Codó têm introduzido no terecô tradicional (a chamada mata pura ou mata virgem) elementos da umbanda, da quimbanda e do candomblé, passando a cultuar exus e pombagiras” (2004, p. 67). A mesma autora afirma que estas influências são apontadas pelos mais tradicionalistas como responsáveis pela associação que se tem feito do terecô com a magia negra. As interinfluências com o tambor de mina são, entretanto bem mais antigas. Mas o Terecô não tem uma estrutura organizacional fixa ao estilo de terreiro e boa parte das atividades rituais acontece nos altares domésticos do terecozeiros. Com isso, não há também no Terecô a presença de estruturas comuns em outras tradições como quartos de iniciação, de assentamentos, lugar de oferendas. O ritual é mais centrado no transe das “entidades da mata” (caboclos). Outra diferença interessante é o uso de um único tambor, tocado com a mão (tambor da mata). A atividade central do terecozeiro parece ser no âmbito da magia curativa. Ele prepara e distribui seus banhos de ervas para afastar males e proteger as pessoas a partir de seu altar doméstico e o faz não somente aos fieis, mas pessoas não diretamente ligadas ao culto, que o procuram entretanto com objetivo de cura. c) O Nordeste do Xangô e do Candomblé De resto, o nordeste afro-brasileiro é o reino da tradição Ioruba. Esta tradição foi relativamente bem conservada no Brasil e entre as diversas tradições religiosas africanas que chegaram ao Brasil, foi esta sem dúvida a que melhor sobreviveu, de modo que recebeu a fama de ser entre as religiões afro-brasileiras a tradição mais fiel, mais pura e mais africana. Esta religião afro-brasileira é conhecida na Bahia com o nome Candomblé e em Pernambuco, Alagoas e Sergipe com o nome de Xangô. Algumas diferenças existentes entre o Candomblé e o Xangô são mais ao nível de organização do culto que ao nível de compreensão religiosa. O Candomblé é claramente uma tradição mais rica em instrumentais e indumentárias, comparada com o Xangô, de origem mais pobre e simples. Enquanto o Xangô permaneceu com este nome em seus estados de origem, o Candomblé espalhou-se com este nome para todo o país e até para fora. Não se pode deixar de citar aqui o Candomblé de Caboclo ou Candomblé Angola, tradição de influência banto. d) O Batuque gaúcho Uma outra região de forte presença de culto afro-brasileiro é o Estado do Rio Grande do Sul, especialmente na cidade de Porto Alegre. A tradição religiosa afro-brasileira que ali se desenvolveu é semelhante à da Bahia, portanto de tradição Iorubana, conhecida sob o nome de Batuque. A teologia e a liturgia com sua rica mitologia são em grande parte idênticas à da Bahia, sendo que a liturgia foi bastante simplificada no sul. Se no Nordeste uma pessoa só pode incorporar um único Orixá no culto, no Sul conhece-se a possibilidade de incorporação de diversos Orixás. Uma outra simplificação, e com isso perda de parte da tradição no Batuque se comparado ao Candomblé, é a simplificação da hierarquia. Enquanto um babalorixá ou uma ialorixá no Nordeste tem uma grande influência sobre a vida dos membros de seu terreiro, influência esta que ultrapassa os limites da religião, no Sul esta autoridade limita-se ao âmbito do culto e fora deste o relacionamento entre chefe do culto e membro do terreiro é mais marcado pela atitude de vizinhança que de autoridade. A pobreza dos membros e das casas do culto no Sul é que forçou esta simplificação. O pequeno espaço destinado ao culto levou ao fato de que muitas vezes as estátuas de santos foram substituídas por quadros dependurados nas paredes. Esta pobreza que limitou as possibilidades do culto e de organização também influenciou outros aspectos da religião como as oferendas e o calendário. Com o passar do tempo, o Batuque recebeu bastante influência da Umbanda e esta religião expandiu-se ao sul para o Paraguai, Argentina e Uruguai. e) O Sudeste: berço da Umbanda As cidades do Rio de Janeiro e São Paulo são domínios da Umbanda. Embora o Rio de Janeiro tenha sido o berço da Umbanda, esta se expandiu rapidamente para São Paulo e hoje ela está presente fortemente em todas as grandes cidades brasileiras. Diversos fatores facilitaram esta expansão da Umbanda pelas grandes cidades, desde sua capacidade de adaptação a novas situações até a forte migração populacional que se observa no Brasil. A migração interna, um fator que facilita a expansão da Umbanda, é já um fator que limita a expansão do Candomblé, muito mais ligado aos seus locais de origem. Um adepto do Candomblé é membro duma única comunidade, ou seja, da comunidade onde ele fez sua iniciação. É lá que está fixado seu Orixá e lá ele deve fazer suas obrigações principais. Um membro do Candomblé baiano que migra para São Paulo não passa a ser membro de algum terreiro em São Paulo. Ele pode frequentar algum terreiro em São Paulo, mas seu Orixá continuará fixado no terreiro de origem. Com isso a fundação de novos terreiros de Candomblé é algo mais difícil que a fundação duma nova casa de Umbanda. Além disso, o espaço exigido por uma casa de Candomblé é muito maior que o exigido por uma de Umbanda, detalhe muito importante nas grandes cidades. A Umbanda mostra aí sua grande capacidade de adaptação a novas limitações. A expansão da Umbanda a partir do sudeste para todo o Brasil, acabou gerando o fato de ter sido a Umbanda em muitos lugares a religião responsável pela chegada do Candomblé. A grande valorização que conheceu o Candomblé a partir da década de 1970, transformando-a por um lado em religião universal (e não mais de um grupo étnico) e por outro lado ganhando uma certa aura de religião africana de maior fundamento ou pureza, fez com que muitas lideranças religiosas da Umbanda tenham procurado também iniciar-se no Candomblé. Suas casas passaram – no mais das vezes – a conduzir o culto tanto da Umbanda quanto do Candomblé. Casas assim são por vezes chamadas de Umbandomblé ou então casas transadas. Em Minas Gerais, por exemplo, estado onde a Umbanda é anterior ao Candomblé, é muito comum encontrar este fato de umbandistas terem se iniciado no Candomblé e conservarem os dois cultos. Junto à Umbanda não se pode deixar de citar também o Omolocô, tradição tida às vezes como precursora da Umbanda, outras vezes como sua variante (Umbanda de Omolocô), outras vezes nomenclatura utilizada para designar a junção da Umbanda com o Candomblé. f) O Jarê da Chapada Diamantina O Jarê é uma tradição religiosa afro-brasileira encontrada especialmente na região da Chapada Diamantina (BA). Senna chama esta tradição de “uma face do Candomblé” (1998). O Jarê foi mais uma das religiões de origem africanas que o processo de escravização produziu no Brasil. Em sua base estão tradições banto, que receberam posteriormente influências nagô e – mais tarde – de Umbanda. O termo Jarê é de origem incerta, podendo significar tanto uma dança ritual ou ser uma palavra derivada do termo banto Njale, ação de invocar proteção dos deuses (SENNA, 1998, p. 69). Sua introdução na Chapada Diamantina está ligada à descoberta do ouro no século XVIII e das populações que para lá se deslocaram para o garimpo. De início não se tratava de um culto organizado, mas muito mais de ações de proteção e defesa, de cura e feitiço. Sua estruturação ocorre com o tempo, reunindo influências diversas. Seu culto é baseado em entidades que são vistas como linhagens ou famílias e a ligação dos fieis é muito mais com a casa/comunidade e a linhagem de entidades que ao mestre ou curador. Há uma tendência, porém, de os membros da comunidade cultuarem preferencialmente a mesma entidade-guia do curador. Entende-se que a coesão das entidades espelha-se também na coesão da comunidade e vice-versa. “Eles próprios afirmam, os seus guias estão em contado com outros da mesma linhagem e este é o motivo pelo qual o curador encaminha o seu cliente para outro quanto estes têm como santo de cabeça, entidade de outra linhagem” (SENNA, 2004. p. 76). As entidades ou encantados que incorporam nos rituais são compreendidos e experimentados não só como individualidades personalizadas, mas como membros de uma grande unidade. Assim, se pegarmos, por exemplo a entidade do Caboclo Pena Branca, no Jarê se entende que ele é um encantado que faz parte de um grupo dentro de um povo. De modo que Pena Branca é, por assim dizer, o membro de uma tribo (os Pena Branca) que pertence a uma aldeia (Força da Mata), que, por sua vez, supõe um povo (Aruanda, Cetroá ou Badê). (SENNA, 2004, 76) Mesmo que este imaginário não seja compreendido exatamente como o imaginário das nações do Candomblé, ele guarda uma grande semelhança. E, como também em outras tradições religiosas afro-brasileiras, a organização deste mundo imaginário de entidades não carrega uma compreensão única de unidade, sendo que cada casa ou grupo pode fazer a sua síntese. Esta compreensão tem uma função especial no ritual, onde os encantados são invocados e se manifestam dentro desta lógica de pertença a uma família, tribo, nação. Senna afirma que o Jarê tem sofrido influências diversas nos últimos tempos e estas “contribuíram para que o maniqueísmo do bem e do mal encaminhe-se, em parte, para a ‘dialética’ dos elementos complementares mais comuns na mundividência da umbanda e seus desdobramentos” (SENNA, 2004, 77). Mesmo com estas influências diversas, o Jarê conserva uma certa hierarquia na memória do culto, onde as entidades mais antigas da tradição são tidas como mais fortes na arte da cura ou mesmo da força de impor o medo. Em termos de hierarquia na religião, a função principal é ocupada pelo mestre ou curador (não é comum usar a denominação pai-de-santo). Este é aquele que tem a capacidade da “cura considerada total” (SENNA, 1998, p. 107), ou seja, que domina todo o ciclo de cura através da incorporação das entidades. A esta função se chega pelo carisma pessoal. Há uma espécie de consenso em torno da pessoa que vai ocupar esta função via aceitação da comunidade por conta de sua atuação. Esta parece ser uma função masculina, pois Senna, pesquisador do Jarê, afirma que “não conseguimos identificar nem tivemos notícia que tivesse havido no passado, uma mulher que pudéssemos identificar como mestre. Isto significa que o papel subalterno da mulher na sociedade chapadina continua sendo uma realidade na hierarquia do jarê” (1998, p. 110). A ele se juntam os mestres secundários, que executam funções por ele determinadas. Os mestres secundários não chegarão, via de regra, a serem mestres principais, pois como já exposto, eles são ligados ao mestre pela linhagem, ou seja, estão subordinados a uma hierarquia de entidade e não apenas de pessoa. Esta estrutura também se mostra no ritual, onde são feitos cânticos de chamada, incorporação e despedida por linhagens, onde se manifestam então os guias (ou espíritos) a elas vinculados. A atuação mais acentuada do mestre acontece no processo curador. Através do transe com seu guia, ele irá tanto identificar a doença, como proceder o diagnóstico e a prescrição da cura. Como doença se pode entender fenômenos diversos que não apenas algum mal físico corporal. Aqui se pode entender também dificuldades de relacionamento, problemas com a lavoura ou os animais, desastres naturais, etc., ou seja, todos os elementos entendidos como dificultadores da vida. Do processo curativo faz parte também a inclusão do consulente na lógica religiosa, não sendo rara a introdução e participação desta pessoa no sistema religioso como elemento de cura ou de convivência com o problema pelo qual o curador foi procurado. g) O Candomblé de Caboclo Entre as religiões afro-brasileiras há também a denominação de “candomblé de caboclo”, expressão que não aponta necessariamente para um só grupo religioso. Como consta na expressão, a entidade caboclo é o centro deste culto. “O caboclo é a entidade espiritual presente em todas as religiões afro-brasileiras, sejam elas organizadas em torno de orixás, voduns ou inquices. Pode não estar presente num ou noutro terreiro dedicado aos deuses africanos, mas isto é exceção” (PRANDI; VALLADO; SOUZA, 2004, p. 120). Os mesmos autores afirmam, entretanto, que o caboclo “constitui o cerne de um culto praticamente autônomo, o candomblé de caboclo” (p. 120). A origem deste culto estaria na tradição banto, que cultuava entidades espirituais ligadas geograficamente a espaços fixos, donos da terra. Estas não poderiam ser transportadas para o distante Brasil e assim se fez necessária a busca por entidades donas desta terra. Isto teria sido encontrado no caboclo (o índio), mantendo-se assim a compreensão religiosa tradicional e colocando uma figura para desempenhar o papel necessário nesta terra. Em torno desta figura do caboclo foi sendo construído com o passar do tempo um imaginário bastante amplo. Assim, embora os caboclos sejam majoritariamente identificados como índios, há aqueles de origens míticas diversas, como os boiadeiros, os turcos, os marinheiros, os baianos. São tidos como entidades comunicativas, alegres, garbosas, dançantes. Além disso, são corajosos, valentes, destemidos e fortes. Seu poder está na capacidade de cura e na sabedoria. E estão sempre dispostos a ajudar. Entende-se que os caboclos conhecem os segredos das ervas e assim as usam como remédios e banhos medicinais. A expressão “candomblé de caboclo” teria surgido na Bahia, onde é encontrada já na década de 1930, e teria sido usada pelos candomblés de nação queto, não afeitos ao culto de caboclo, para se diferenciar do candomblé que cultuava somente entidades africanas. E nesta diferenciação vai um que de depreciação a esta religiosidade. A isto contribuiu também o fato de esta forma religiosa ter sido pouco estudada em comparação ao candomblé de outras nações. Apesar desta discriminação, esta forma religiosa permaneceu ao longo do tempo, tendo influenciado o candomblé de nação – que mesmo de forma escondida cultua o caboclo – e sido decisivo na formação de uma outra tradição religiosa no Rio de Janeiro na mesma década de 1930, a umbanda. Mesmo tendo o candomblé de caboclo adentrado para o candomblé e estado na base da umbanda, este culto permaneceu como forma autônoma e como tal se expandiu bastante pelo Brasil. “O candomblé de caboclo atualmente é praticado paralelamente ao culto de divindades africanas, estando associado aos terreiros de inquices, orixás e voduns” (PRANDI; VALLADO; SOUZA, 2004, p. 124). Nestas casas, seu culto é uma espécie de ritual paralelo, cultivado nas mesmas casas, mas em espaços e tempos próprios que não se misturam com os outros rituais da casa. Participam destes rituais tanto pessoas iniciadas na casa de candomblé de nação, como outras pessoas que não passaram pelo processo de iniciação, mas recebem seus caboclos durante os rituais. Há ali uma diferenciação: enquanto a participação ativa no ritual do candomblé de nação exige a iniciação, a participação no culto de candomblé de caboclo pode dispensá-la. Nestas casas, os caboclos podem receber sacrifícios e oferendas, bem como ter festas (e fartas) a eles dedicadas. Na estrutura da casa de candomblé, o caboclo pode receber também um espaço próprio para seu assentamento – onde são depositados elementos que o representam – bem como ter seu quarto-de-santo, uma cabana de palha, semiaberta, no quintal do terreiro. Nas representações indumentárias, os caboclos são caracterizados conforme sua origem mítica: se índios, carregam elementos como cocar, penas, arco e flecha; se boiadeiros, seus elementos são os típicos da lida com o gado no sertão nordestino; se marujos, utensílios do imaginário da vida nos navios, etc. Há caboclos masculinos e femininos e se entende nas casas de candomblé serem eles filhos de orixás, carregando assim geralmente características desta sua filiação. Por exemplo, filhos do orixá Ogum seriam caboclos como Pena Azul, Rompe Mato, Laço de Prata; de Oxóssi seriam filhos, por exemplo, caboclos como Mata Virgem, Pena Verde, Jurema, Sete Flechas, etc. Prandi, Vallado e Souza apresentam uma lista bastante extensas destas filiações de caboclos de seus respectivos orixás (2004, p. 125-126). Mesmo havendo esta grande proximidade e entrelaçamento entre orixás e caboclos, se entende que são entidades distintas. Alguns elementos que as distinguem: a) Os filhos-de-santo são iniciados aos orixás, mas não aos caboclos. No máximo se faz o “batismo do caboclo”, isto é, a confirmação de seu transe com os fieis, com alguns rituais simplificados, se comparados ao longo e complexo processo de iniciação no candomblé; b) Enquanto os orixás descem no ritual para dançar com seus filhos (e neles incorporam), os caboclos podem incorporar em qualquer fiel, dado não haver a filiação; c) Os orixás são figuras dançantes nos rituais, mas dificilmente falantes; enquanto os caboclos são muito falantes, podendo ser simpático, carrancudo, irreverente, etc., mas sempre comunicativos; d) Para se conhecer a vontade dos orixás é preciso recorrer ao jogo de búzios (e à pessoa que joga), enquanto os caboclos falam diretamente, cara-a-cara com as pessoas (através do mediador). Há neste sistema dois sistemas de consulta, uma compreensão de que as falas dos caboclos estão subordinadas ao jogo de búzios e em caso de dúvida, uma fala do caboclo precisa ser confirmada pelos búzios; e) Nos rituais aos orixás, as cantigas são geralmente em língua africana, enquanto os cânticos aos caboclos são em português; f) Durante o transe, é comum que os caboclos fumem charutos e bebam (vinho, cachaça, cerveja), o que não é observado durante o transe com o orixá; g) Orixás não dão consultas quando incorporados ou no máximo mandam algum recado quando no estado de desincorporação (estado de erê), enquanto os caboclos dão consultas e serem muito procurados justamente por esta sua função; h) Embora figuras autônomas, entende-se no candomblé serem os caboclos subordinados aos orixás e mesmo mensageiro deles. Dado que é muito comum o trânsito de adeptos da umbanda para o candomblé, é comum também que estes tragam consigo os seus caboclos das casas de origem. Nesta passagem, os caboclos ficam um tempo sem se manifestar, até que o fiel passe pelos rituais decisórios da iniciação, quando aprendem uma nova postura religiosa característica do candomblé. Mesmo quando esta passagem da umbanda para o candomblé não é só do fiel, mas da própria casa (geralmente definida pela passagem ritual da mãe ou pai-de-santo), os caboclos são figuras levadas para dentro da nova ritualidade. h) O Canjerê mineiro No complexo campo das formações religiosas afro-brasileiras, existe também o canjerê mineiro. Alguns o entendem como apenas um nome diferente para designar a umbanda. Outros são da opinião de se tratar de uma religiosidade precursora da umbanda em terras mineiras e não apenas uma nomenclatura diferente (TAVARES; FLORIANO, 2003, p. 168-169). O levantamento sobre a existência desta tradição torna-se difícil por não haver documentação e por – muitas vezes num contexto marcadamente católico – uma forma de religiosidade diferente da hegemônica ser exercida em caráter escondido ou nos subterrâneos. Assim, informantes sobre o canjerê o descreveram como “baixo espiritismo”, uma expressão carregada de preconceito e utilizada para distanciar esta religiosidade daquela espírita, também chamada de “mesa branca”, expressão para apontar uma religiosidade tida como superior. Outros apontaram que canjerê seria uma nomenclatura usada pelo clero e pela polícia para perseguir casas de umbanda. Há entretanto notícias destas práticas em Juiz de Fora nos inícios dos anos 1920, o que aponta para uma tradição anterior à denominação comum de umbanda (TAVARES; FLORIANO, 2003, p. 168). Mas não se trata de caso único. Em diversas cidades mineiras e no Vale do Paraíba carioca há notícias de práticas religiosas de matriz africana nos idos de 1920, antes de a Umbanda carioca ter alcançado estas regiões. Quando a umbanda se expande por estas cidades, parece que terem sido estas práticas absorvidas pela umbanda ou pelo menos terem sido entendidas como de umbanda. Das notícias que se tem, tratava-se no mais das vezes de práticas curativas e não tanto de rituais em comunidade, embora uma das casas mais antigas encontradas – o centro da Dona Mindoca – era ainda uma casa em funcionamento no início dos anos 2000, quando da pesquisa de Tavares e Floriano (2003, p. 170). i) As religiões da Ayahuasca e o Vale do Amanhecer Neste mesmo contexto de influências religiosas africanas sobre outras tradições religiosas no Brasil há de se citar também o universo das chamadas religiões ayahuasqueiras surgidas na Amazônia como o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha, cujo precursor, Mestre Irineu, havia praticado a Umbanda. Dela herdou diversos elementos do imaginário presente sobretudo no Santo Daime, bem como a tradição curativa. O mesmo se poderia aventar de influências religiosas africanas ou afro-brasileiras sobre outros grupos como o Vale do Amanhecer, fundado por Tia Neiva, nos arredores de Brasília e mesmo sobre grupos pentecostais que se utilizam de figuras e elementos advindos da Umbanda como os exus e sua incorporação. j) Religiosidades afro-brasileiras Além das tradições religiosas de influência africana citadas acima, há muitas outras encontradas em âmbito menor ou locais que aqui não serão nomeadas. Há também de se mencionar outras tradições religiosas que receberam influências africanas mas que geralmente não são contadas como grupos autônomos de religião e às vezes vistos na fronteira com o catolicismo ou então chamados de grupos folclóricos como a Folia de Reis ou o reizado, o congado, o jongo ou a capoeira. k) Nova influência religiosa africana no Brasil Há que se notar neste contexto a existência de influência religiosa de matriz africana após o período de escravização. Trata-se do Culto a Ifá, que aportou no Brasil nos últimos anos, com centro no litoral paulista e ramificação em Brasília. Trata-se de algo incipiente, mas digno de nota, por se tratar de um movimento bastante diferente: uma espécie de religião de matriz africana com elementos missionários. l) A diáspora africana Também se faz necessário dizer que não apenas negros são membros das religiões afro-brasileiras. Negros e mestiços formam a grande maioria dos adeptos, mas também descendentes de outras etnias entraram para as religiões afro-brasileiras, de modo que as tradições religiosas africanas no Brasil são hoje continuadas por pessoas de todas as origens. E disto de pode dizer que há uma verdadeira diáspora africana no Brasil. Apesar das muitas diferenças entre as religiões afro-brasileiras, a influência do catolicismo – sobretudo a presença de imagens de santos – parece ser uma constante em praticamente todos os grupos. A importância dada a esta presença é muito diversa. Um outro ponto em comum entre as religiões afro-brasileiras parece ser o transe e a invocação de entidades espirituais. Embora esta invocação seja interpretada e valorizada de forma diferente, ela tem um papel central em todos estes cultos. Também há de se notar a influência cada vez maior sobre as religiões afro-brasileiras de compreensões espíritas, mormente a ideia da reencarnação. Hoje, boa parte dos membros das mais diversas religiões afro-brasileiras acredita na reencarnação, compreensão não presente nos povos de origem destas tradições.
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Última atualização em Seg, 16 de Abril de 2018 18:46 |