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Volney Berkenbrock
Religiões Afro-brasileiras - Cap. 2 PDF Imprimir E-mail
Escrito por Volney Berkenbrok   
Seg, 02 de Abril de 2018 16:45

 

Capítulo 2.

Da África ao Brasil: A escravização e o transplante de culturas

 

2.1 A deportação de africanos para o Brasil

Quando no ano de 1500 o navegador português Pedro Álvares Cabral tomou posse em nome do rei português Dom Manuel da terra mais tarde chamada de Brasil, os portugueses estavam interessados, sobretudo em ouro e especiarias. Depois de uma curta permanência em terra os portugueses constataram que nem uma nem outra coisa podiam ser adquiridas. Os portugueses não puderam encontrar logo de sua chegada nem ouro nem prata, nem qualquer outro metal. O rei de Portugal foi logo informado através da carta de Pero Vaz de Caminha. Os habitantes encontrados na terra não produziam nada que pudesse ser vendido no mercado europeu de então. Estes "não aram, nem possuem bois ou vacas", relatou Pero Vaz de Caminha. Esta primeira expedição não trouxe a Portugal muito lucro e por isso também não muito interesse por esta terra.

Um ano mais tarde, a coroa portuguesa enviou uma outra expedição, para examinar o país mais de perto e descobrir possíveis fontes de lucro. Esta expedição teve maior sucesso e descobriu ao longo da costa uma espécie de madeira, da qual facilmente se poderia extrair uma tinta, o chamado pau-brasil, por sua cor avermelhada (de brasa) – nome que mais tarde acaba influenciando a denominação da colônia toda. O cristão convertido do Judaísmo, Fernão de Noronha, recebeu sozinho da coroa portuguesa a incumbência e a permissão para explorar esta madeira utilizada para tingir tecido.

Logo adiante, Portugal também se interessa em produzir açúcar no país. Dom Manuel ordenou no ano 1516 que se fizesse a tentativa de plantar cana e produzir dela açúcar nestas terras. Data do ano de 1521 o primeiro relato de que se produziu açúcar no Brasil. Mesmo assim, Portugal não mostrava interesse muito grande pelas terras aqui por eles descobertas. A colonização propriamente dita do país começou, apenas a partir de 1530, com a expedição de Martim Afonso de Sousa, que introduziu a agricultura e a produção de açúcar no Brasil. Este produto tinha sido levado para a Europa pelos árabes e começara a ser produzido mais tarde na Sicília e na Espanha. Seu preço era, porém tão elevado, que apenas as famílias nobres o podiam consumir. No ano de 1440 uma arroba de açúcar custava 18,30 gramas de ouro. Quando Portugal apoderou-se do Brasil, os portugueses já dominavam o mercado mundial de açúcar. A maior produção era feita na Ilha da Madeira e em 1540 havia já 100 navios empregados no trabalho de transporte do açúcar português.

Para poder expandir a produção de açúcar em território brasileiro, os portugueses precisavam de mão-de-obra. Inicialmente tentaram servir-se da força de trabalho indígena, escravizando-os. Esta tentativa mostrou-se ser não rentável. Os índios por um lado não estavam acostumados a esta forma de trabalho na terra, não conhecendo em boa parte esta forma de cultivo, e recusaram-se ao trabalho, apesar da opressão cruel que sofriam, morrendo em massa, especialmente através de doenças transmitidas pelos europeus e contra as quais eles não tinham resistência.

Esta forma de escravização indígena sofreu logo protestos. O Papa Paulo III condenou no ano 1537 na bula Veritas Ipsa a escravização indígena. A coroa portuguesa proibiu-a em 1566, proibição esta que não deve ter sido rigorosamente observada, dado que no ano de 1680 há outra proibição. Depois que a escravização dos índios mostrou não ser rentável e ocasionou protestos, o problema da falta de mão-de-obra foi resolvido através da importação de escravizados negros. Pouco a pouco os escravizados indígenas foram substituídos por escravizados negros. Já no ano de 1549 os donos de plantações receberam o direito de importar ao Brasil cada qual 120 escravizados da Guiné ou da Ilha de São Tomé. Esta é a primeira permissão legal para a importação de escravizados africanos ao Brasil de que se tem notícia. É de se supor, porém, que já antes desta data havia escravizados negros nas plantações de cana-de-açúcar de São Vicente.

Quando exatamente entraram os primeiros escravizados africanos no Brasil, não se pode mais determinar com certeza. As expedições de Pero Capico (1516 e 1526), que foi o primeiro a tentar plantar cana-de-açúcar no Brasil, e de Martim Afonso de Sousa (1531) podem ter introduzido os primeiros escravizados negros no Brasil. Há também a notícia de que um tal de Bixorda teria trazido escravizados negros ao Brasil no ano de 1538.

Quando no ano de 1548 o povoado de São Vicente foi ameaçado através de ataques indígenas, Luís de Góis escreveu ao rei português pedindo ajuda. Nesta carta consta o pedido ao rei para que tenha piedade das muitas almas cristãs que na vila de São Vicente, entre homens, mulheres e crianças eram mais de 600, além dos escravizados, mais de 3 mil. Não fica claro, porém, se se trata de escravizados negros. Talvez se trate tanto de índios escravizados como de escravizados negros, pois a escravização de negros já era naquele tempo uma realidade em Portugal e suas colônias.

Em favor da suposição de que já antes de 1549 escravizados negros haviam sido trazidos para o Brasil está o fato de que em 1550 o Brasil já lidera a produção mundial de açúcar - o que necessitaria de muita mão-de-obra - e que a escravização de africanos já era praticada por Portugal há mais de 100 anos.

Já em 1434 os portugueses compravam escravizados do norte da África de forma institucionalizada. Estes eram empregados em Portugal tanto no trabalho doméstico como na agricultura. Muitos eram utilizados no cultivo de cana-de-açúcar na ilha de São Tomé. Dez anos mais tarde os portugueses organizaram uma expedição à África para prender escravizados. O escrivão da expedição noticia a prisão de 239 negros. Os escravizados negros eram utilizados em Portugal, sobretudo na agricultura, de tal forma que podemos supor terem sido trazidos de Portugal para o Brasil os primeiros escravizados africanos e não diretamente da África.

No início não havia nenhum comércio organizado de escravizados, de forma que não se pode falar em tráfico de escravizados. Os primeiros escravizados trazidos ao Brasil devem ter vindo junto com colonizadores, quase que como parte de sua bagagem. Estes primeiros escravizados de portugueses eram advindos de diversos pontos da costa ocidental da África, dominados por Portugal. A maioria advinha da Ilha de São Tomé e de Angola. Com a introdução do primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza (1549) deve ter sido intensificado o número de escravizados trazidos ao Brasil. Ao mesmo tempo cresceu rapidamente o número de engenhos.

A partir da metade do século XVI o tráfico de escravizados entre a África e o Brasil foi intenso, organizado e cruel. O lucro era a principal força impulsionadora do tráfico. Ele durou mais de 300 anos e sua abolição, processo que ocorre em etapas até a chamada lei áurea de 13/05/1888, deve-se provavelmente mais a interesses econômicos que necessariamente humanitários.

 

2.2 A escravização

a) O tráfico de escravizados

Caça, guerra, compra: através destes métodos os africanos foram escravizados. No início da fase do comércio escravista, os portugueses caçavam pessoas na África e o produto da caça era escravizado. Este método era, porém muito arriscado. Os caçadores de escravizados europeus tinham contra si não apenas a geografia desconhecida, como também os chefes africanos, que controlavam rigidamente seus territórios. Por fim as doenças espalhadas pelos europeus fizeram a caça de escravizados praticamente impossível. Quando, porém o comércio de escravizados se estabilizou e a quantia necessitada era grande, os comerciantes europeus de escravizados procuraram trabalhar em conjunto com chefes africanos, comprando destes pessoas para ser escravizadas.

Os escravizados eram em sua maioria ou prisioneiros de guerras ou produto de caça com objetivo escravizador. Os traficantes de escravizados provocavam inimizades entre chefes africanos, aumentando assim as guerras e consequentemente o número de pessoas feitas disponíveis para a escravização. Muitos chefes africanos vendiam também súditos ou rivais pelo poder. Por fim a sede de lucro de chefes africanos também contribuiu para o aumento do número de escravizados. Estes trocavam seus escravizados-produtos por produtos dos europeus como tabaco e cachaça brasileiros. Sem a colaboração de chefes africanos, o tráfico de escravizados não teria atingido as proporções que atingiu, nem teria sido mantido por tanto tempo. Não se pretende de modo algum com esta constatação colocar a responsabilidade pelo tráfico de escravizados e suas consequências em chefes africanos. Este trabalho conjunto de chefes africanos com traficantes europeus mais se poderia chamar de cooptação que de colaboração.

O volume da necessidade de fornecimento de mão-de-obra crescia na colônia Brasil nas mesmas proporções do crescimento do número de engenhos e de plantações de cana-de-açúcar. Estes se concentravam no início da colonização, sobretudo nas províncias da Bahia e Pernambuco. Já no final do séc. XVI, porém escravizados eram levados para Paraíba, Alagoas e Sergipe. O interesse principal, no entanto dos traficantes de escravizados no séc. XVI não era o Brasil, mas sim as colônias espanholas nas Américas, que eram mais ricas e pagavam melhor preço pelos escravizados. Apesar disso o número de escravizados trazidos ao Brasil cresceu rapidamente. Estima-se em dois a três mil o número de escravizados africanos no Brasil por volta de 1570.

Duas décadas depois este número já deve ser de nove a dez mil e na virada do século em torno de 15 mil. Segundo estas estimativas, no primeiro século de colonização foram trazidos para o Brasil cerca de 30 mil escravizados africanos. Para o final do século XVI, o número de índios escravizados é estimado em 60 mil. Neste mesmo período, o número de engenhos subiu para mais de 100. Cada engenho possuía em média de 20 a 300 escravizados.

A expansão da produção açucareira em Pernambuco no início do séc. XVII exigia mais mão-de-obra. Entre 1600 e 1630 devem ter sido trazidos para Pernambuco cerca de 75 mil africanos. O número de índios escravizados era também grande nesta época, embora a política portuguesa tivesse como consequência a dizimação destes, fazendo com que o número de índios escravizados diminuísse, enquanto aumentava o número de escravizados africanos. No final do séc. XVI os africanos já totalizavam mais de 25% da população conhecida da colônia.

Durante as invasões holandesas (1624-1654), a maioria dos índios colocou-se ao lado destes contra os portugueses. Os holandeses tomaram Salvador em 1624 e foram expulsos pelos portugueses um ano mais tarde. Em 1630 ocorreu uma segunda invasão, com a ocupação de diversas cidades. A tentativa holandesa de tomar parte da colônia portuguesa para si fracassou definitivamente em 1654 com a capitulação destes perante as tropas portuguesas em Pernambuco. Nestas batalhas foram envolvidas diversas tribos indígenas, tanto ao lado de portugueses como de holandeses. As tribos que lutaram ao lado dos holandeses foram, com a derrota destes, praticamente dizimadas. Com o tratado de paz de 1661 encerraram-se as contendas e a pretensão holandesa de tomar parte da colônia.

A política de amizade dos holandeses perante os índios teve como consequência a necessidade de um maior número de escravizados africanos para o trabalho. Os holandeses também recorreram ao tráfico de escravizados para garantir a mão-de-obra. Os holandeses tomaram dois domínios portugueses na África para garantir o fornecimento de escravizados ao Brasil. Trata-se de São João da Mina e Angola. Os holandeses mantiveram sob seu controle São João da Mina até quase o final da época do tráfico de escravizados, enquanto Angola foi recuperada pelos portugueses em 1648. O número de escravizados africanos trazidos pelos holandeses é estimado em 33 mil. Durante a ocupação holandesa faltava mão-de-obra na Bahia. Quando do cessar-fogo entre portugueses e holandeses em 1641, os holandeses permitiram que os portugueses da Bahia importassem diretamente escravizados de quatro pontos da Costa da Mina (hoje costa do Benin), porém sob duas condições: Os escravizados só poderiam ser trocados por tabaco baiano e cada carregamento de escravizados tinha que pagar 10% de imposto à fortificação holandesa em São Jorge da Mina.

A coroa portuguesa não tinha nenhum lucro através deste comércio direto de escravizados entre a África e a Bahia, pois os produtos portugueses não eram envolvidos na transação. O rei português Dom João IV renovou em 1644 a permissão para este tráfico, sob a condição, porém de que estes escravizados não poderiam ser vendidos em qualquer outro porto – especialmente em Pernambuco ou Rio de Janeiro – a não ser no de Salvador. Com isso Salvador da Bahia transformou-se no maior e mais significativo centro do tráfico escravista, de modo que mesmo após a expulsão dos holandeses, a coroa portuguesa não mais conseguiu quebrar este monopólio da Bahia. Este comércio direto de escravizados é o motivo pelo qual a Bahia tem hoje ainda a maior concentração de negros no Brasil.

Entre 1580 e 1640 Portugal não era nenhuma monarquia independente e encontrava-se sob a regência da coroa espanhola. Este fato não concorreu, porém para nenhuma grande modificação na política praticada em relação à colônia Brasil. Quando em 1640 a monarquia foi restaurada através do rei Dom João IV, Portugal havia perdido suas colônias na Ásia e não detinha mais o monopólio do comércio de escravizados na África. Portugal não era também mais nenhuma potência mundial nos mares. Estes eram agora dominados por holandeses, ingleses e franceses. A Portugal não sobrou outra alternativa que a de concentrar-se em suas colônias na América do Sul e na África. Ao lado da produção de açúcar, incentivou-se a produção de tabaco. Novas áreas foram abertas para a agricultura, os índios que aí moravam foram combatidos com mais intensidade e a importação de escravizados da África foi intensificada na segunda metade do séc. XVII. Entre 1600 e 1650 foram trazidos cerca de 200 mil africanos ao Brasil e nos 50 anos seguintes entre 300 e 500 mil.

A descoberta de ouro no Brasil influenciou fortemente o comércio de escravizados para o Brasil no séc. XVIII. Esta se deu inicialmente às margens do Rio São Francisco, depois nas chamadas Minas Gerais e um pouco mais tarde nas imediações de Cuiabá. Primeiro foram utilizados os escravizados que já se encontravam no Brasil na extração do ouro. Mais tarde passou-se a importar africanos diretamente para o trabalho do ouro. Entre os anos de 1700 e 1800 teria sido extraído no Brasil tanto ouro como a metade de ouro do resto do mundo nos séculos XVI, XVII e XVIII. Toda produção de ouro do Brasil foi sustentada pelo trabalho de escravizados. O porto da Bahia tem aqui um papel importante. Pelos registros portuários, entre 1678 e 1815 foram feitas deste porto 1770 viagens à África para buscar escravizados. 1731 destas viagens tinham a Costa da Mina como objetivo e somente 39 delas o Congo ou a Angola. 626 navios estavam ocupados no transporte de escravizados e mais de um terço deles realizou apenas uma única viagem.

Um navio negreiro demorava de 6 a 18 meses para fazer a viagem. Na África os escravizados eram comprados a troco de tabaco. Um navio podia carregar em torno de 10 mil rolos de tabaco e com esta carga comprava cerca de 400 escravizados. Entre 1743 e 1756 Portugal limitou o comércio de escravizados entre a Bahia e a Costa da Mina a somente 24 cargas de navios (somente 24 navios por ano podiam sair da Bahia para a Costa da Mina). 25 navios que partiram da Bahia entre 1750 e 1755 carregaram 105.958 rolos de tabaco que foram trocados por 11.862 escravizados. Não se pode esquecer que 10% do tabaco foi pago como imposto aos holandeses. Cada navio trouxe em média 475 escravizados. Uma medida portuguesa limitando o número de navios no tráfico de escravizados e fez com que o preço dos escravizados baixasse muito na África. Em 1730 pagava-se 20 rolos de tabaco por escravizado, em 1750 o preço já era de 8 rolos por um escravizado. Portugal não conseguiu, porém manter esta limitação dos navios. Para não deixar o preço por escravizado subir na África, Portugal limitou a 3 mil o número de rolos de tabaco permitido por navio, sendo que com esta medida baixou para 302 a média de escravizados transportados por navio.

A febre do ouro diminuiu na segunda metade do século XVIII, mas esta atraíra para o Brasil muitos imigrantes europeus, especialmente portugueses. Esta população branca era totalmente dependente do trabalho escravo. Todo trabalho braçal ou manual era trabalho de escravizados. O trabalho braçal era tido inclusive como índigo aos brancos da colônia. Assim estavam sob a responsabilidade deles o trabalho doméstico, a manufatura, os consertos, a agricultura, etc. Por isso o tráfico de escravizados não diminuiu após a febre do ouro. Os novos imigrantes europeus precisavam de mão-de-obra para garantir sua subsistência. No Rio de Janeiro um proprietário já podia sobreviver muito bem com dois ou três escravizados (negros de ganho). Em Recife, ao contrário, já eram necessários cerca de 20 negros de ganho para se poder ter uma boa renda.

Estes dois fatores, a febre do ouro e a necessidade de sustento dos novos imigrantes, contribuíram para um aumento enorme da importação de escravizados. Só para a extração do ouro, calcula-se em 470 mil os africanos trazidos ao Brasil. Em meados do séc. XVIII e início do séc. XIX o tráfico de escravizados atingiu dois pontos altos. Assim entre 1741 e 1760 chegaram cerca de 354.500 escravizados aos portos brasileiros e entre 1781 e 1810 cerca de 605.900. A soma dos escravizados trazidos ao Brasil entre 1701 e 1810 é estimada em 1.891.900. Apesar do fato de neste tempo ter sido grande a imigração europeia e de a expectativa de vida de um escravizado no Brasil ser baixa, os escravizados formavam a maior parte da população. Na virada do séc. XVIII ao XIX, os escravizados formavam cerca de 60% da população. No censo oficial de 1817/18 os africanos formavam 66% do total da população.

Em 1808 a família real portuguesa muda-se para o Brasil, fugindo diante da invasão das tropas francesas. Para a família real deve ter sido uma surpresa desagradável ter que morar repentinamente em uma cidade (Rio de Janeiro) de maioria negra, embora a vinda da família real tenha modificado fortemente a imagem da cidade, com a chegada de uma vez de 15 mil pessoas numa cidade de 50 mil habitantes. Não apenas por causa desta surpresa, mas sobretudo por pressão dos ingleses, o rei português Dom João VI, que agora vivia no Brasil e a partir daqui regia, assinou um tratado com os ingleses no qual ele mostra-se "plenamente convencido da injustiça e da má política do tráfico de escravos" (décima cláusula do tratado). Rapidamente o rei português nota, porém que o Brasil depende totalmente do trabalho do escravizado e por isso ao tratado não seguiu nenhuma ação. Mesmo tendo sido um ato sob pressão, é a primeira vez que o governo português fala da necessidade da abolição da escravatura. Os ingleses estavam interessados na abolição da escravatura tanto por motivos humanitários como também por motivos econômico-comerciais e nos dois anos que seguiram-se ao tratado confiscaram 17 navios brasileiros de escravizados. Como o direito ao confisco não estava incluído no tratado, o governo português processou os ingleses, tendo recebido destes - segundo o tratado de Viena de 1815 - uma indenização de 300 mil libras. A ação do governo português contra os ingleses mostra realmente até que ponto este estava "plenamente convencido da injustiça" praticada pela escravização. Através de um outro tratado (1817), os portugueses poderiam praticar o tráfico de escravizados somente entre suas colônias na África e era direito mútuo confiscar todo navio negreiro que se encontrasse ao norte do equador. Os portugueses nunca fizeram uso deste direito. Além disso os traficantes de escravizados que operavam na Costa da Mina (norte do equador), para enganar os ingleses, arranjavam a documentação do navio de tal modo que dava a entender que eles tinham Angola como destino. Assim que passassem para o sul do equador, podiam sem problemas seguir viagem para o Brasil (este truque dos traficantes de escravizados portugueses teria dado origem à expressão até hoje usada "É só prá inglês ver!"). A partir de 1830, por um tratado entre a Inglaterra e o Brasil (agora já independente), o tráfico de escravizados também foi proibido ao sul do equador, tratado este que devia vigorar por 15 anos. Como o Brasil porém não estava interessado nem em controlar, nem em extinguir o tráfico de escravizados, o negócio com seres humanos continuou após o tratado, da mesma forma como antes. Os ingleses patrulhavam as costas africanas, tendo apreendido muitos navios. Entre 1810 e 1870 os ingleses apreenderam 160 mil negros presos como escravizados em navios. A maioria destas pessoas foram levadas às colônias inglesas, especialmente Guiana e Jamaica. Em teoria seriam homens livres, na prática são escravizados de plantações. Quando em 1845 o prazo do tratado expirou, o governo brasileiro avisou o governo inglês que se considerava no direito de retomar legalmente o tráfico de escravizados. A Inglaterra reagiu com o Aberdeen Act (1845), tomando para si o direito unilateral de impedir o tráfico de escravizados. Na realidade pouco foi mudado: os ingleses continuavam a patrulhar e o governo brasileiro continuava a apoiar o tráfico. Por causa desta posição o governo brasileiro era colocado cada vez mais sob pressão internacional e em 1850 foi obrigado a se dobrar. O tráfico de escravizados entre a África e o Brasil foi proibido por lei e tomadas medidas para a que a proibição vigorasse. E pelo número de escravizados importados pode-se perceber que as medidas surtiram efeito: em 1849 foram importados cerca de 54 mil escravizados, em 1850 foram 23 mil, em 1851 foram 3.287, em 1852 foram 700. O último navio com escravizados da África deve ter chegado em 1857. Apesar da legislação e das medidas subsequentes, o governo brasileiro precisou ainda de 7 anos para extinguir o tráfico. Tráfico este que havia sido muito intenso entre 1810 e sua extinção. Estima-se em 1.145.000 o número de escravizados importados neste período.

Durante os mais de três séculos de tráfico de escravizados, estima-se que tenham sido trazidos para o Brasil cerca de 4 milhões de pessoas como escravizados. Esta quantia representa cerca de 35% de todo o tráfico de escravizados entre América e África (após o Brasil, Haiti é o país que mais recebeu escravizados, com cerca de 9% do total). Salvador da Bahia foi o porto por onde entrou a maioria dos escravizados no Brasil, com cerca de 1.200.000 escravizados. Em segundo lugar foi o Rio de Janeiro o porto que mais recebeu escravizados.

Um número exato de escravizados africanos trazidos ao Brasil não pode ser obtido. Para tanto não se tem fontes suficientes. Dois fatores contribuem para esta falta de fontes: primeiro o tráfico de escravizados era oficialmente proibido a partir de 1830, de modo que nesta época não foram mais recolhidos os dados do comércio; e segundo um decreto de Rui Barbosa, ministro das finanças e presidente do tribunal do tesouro público, de 14 de dezembro de 1890 determinou que toda a documentação sobre a escravização fosse queimada. Assim desapareceram papéis, livros, documentos sobre compra, venda, nascimento, libertação, comércio etc. de escravizados, que possibilitariam uma pesquisa mais acurada sobre o número de escravizados. Motivo para a medida de Rui Barbosa foi a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da república (1889). O governo da nova república queria assim manifestar seu rompimento com a antiga ordem e restabelecer "a dignidade do país" e colocar "um sinal de fraternidade..." Com a destruição destes documentos, o governo também queria dificultar as ações de indenizações movidas contra o estado por antigos proprietários de escravizados. Com esta destruição de muitos documentos, as estimativas sobre o número de escravizados introduzidos no Brasil precisa basear-se em outros fatores - além de alguma documentação que não foi destruída - como por exemplo no número de engenhos, na produção açúcar, na produção de ouro, no número de navios, no tamanho dos navios, na quantidade de rolos de tabaco levados para a África etc. A opinião dos pesquisadores sobre o número de escravizados importados não difere porém muito uma da outra.

A extinção do tráfico de escravizados entre a África e o Brasil não significou, porém a abolição do comércio interno de escravizados ou da escravização em si. Os que apoiavam e mantinham a escravização sofreram cada vez mais pressão tanto nacional como internacional. 21 anos após a extinção do comércio escravista entre a África e o Brasil é que foram dados os primeiros passos para a abolição da escravatura no país. Em 1871 foi promulgada a "Lei do Ventre Livre" segundo a qual todos os filhos de escravas eram livres e em 1885 foi promulgada a "Lei do Sexagenário", dando a liberdade a todos os escravizados com mais de 60 anos. E finalmente no dia 13 de maio de 1888 foi assinada a "Lei Áurea", pondo fim à escravização no Brasil.

Não se pode minimizar a importância do movimento abolicionista neste processo, mas sem dúvida interesses econômicos contribuíram também fortemente para a abolição. O dito popular de que os escravizados precisavam de três "p", "pão, pau e pano" teve sem dúvida sua importância. Tornou-se mais barato contratar o trabalho assalariado dos novos imigrantes europeus que manter escravizados. E estes chegavam aos milhares ao Brasil quando Dom Pedro II criou programas de imigração, atraindo ao país muitos europeus, como portugueses, alemães, italianos e poloneses. Só entre 1864 e 1873 chegaram ao Brasil 103.754 imigrantes europeus - sobretudo portugueses - o que fez baixar o preço da mão-de-obra no mercado. Aos novos imigrantes não se precisava fornecer nem pão (alimento), nem pano (roupa).

A procedência exata dos escravizados africanos trazidos ao Brasil não se deixa mais averiguar. Denominações como "Mina", "Angola", "Nagô", "Guiné", que se usava para os africanos no Brasil não determinavam necessariamente a procedência, mas a região ou muitas vezes o porto no qual estes escravizados haviam sido embarcados na África. A denominação, por exemplo muito usada na Bahia de "negro Mina" para os escravizados negros era utilizada para africanos de diferentes regiões e origina-se da fortificação "São Jorge da Mina", um dos mais importantes mercados de escravizados na África.

Por origem geográfica e por época de chegada ao Brasil, se divide o período do tráfico de escravizados em quatro fases distintas. Os escravizados chegados ao Brasil antes da institucionalização do tráfico devem ter vindo da Angola e do Zaire.

O primeiro período é chamado ciclo da Guiné e inicia na segunda metade do séc. XVI. Neste período foram trazidos ao Brasil escravizados sobretudo da costa africana que fica relativamente mais próxima ao nordeste brasileiro, costa hoje localizada na Nigéria, Togo, Gana, Benin, Libéria, Costa do Marfim, ilhas do Cabo Verde, São Tomé e Príncipe.

O segundo período é chamado ciclo da Angola e Congo e abrange o século XVII. Nesta época foram trazidos ao Brasil escravizados procedentes, sobretudo das regiões onde hoje se situam países como Angola, Camarões, Congo, República Democrática do Congo, Gabão e República Central Africana.

O terceiro período é o chamado ciclo da Costa da Mina, dos primeiros três quartos do séc. XVIII. O tráfico de escravizados concentrou-se nas mesmas regiões do primeiro período, especialmente onde hoje se situa a Nigéria e o Benin.

O quarto e último período inclui o último quarto do séc. XVIII e o séc. XIX, inclusive a época do tráfico ilegal. Neste período os escravizados foram trazidos em sua grande maioria do Golfo do Benin, hoje nos países da Nigéria e do Benin. Por volta de 1810, cerca de 50% da população escrava de Salvador era oriunda do Golfo do Benin e por volta de 1835 os oriundos desta região formavam até 60% da população soteropolitana.

Estes quatro períodos dão a impressão que apenas a costa ocidental foi atingida pela escravização. Esta costa é sem dúvida o ponto principal donde foram trazidos escravizados ao Brasil. O tráfico organizado de escravizados penetrou porém profundamente no interior do continente, buscando pessoas do interior e até da chamada Contra-costa. O tráfico de escravizados deixou suas marcas praticamente em toda a extensão da África negra.

Ao Brasil foram trazidas pessoas das mais diversas culturas e povos africanos. R. Bastide (p. 67-68), falando das diversas culturas africanas, das quais foram trazidos escravizados ao Brasil, as divide em quatro grupos principais: os grupos sudaneses (especialmente dos Ioruba e dahomeanos), grupos islâmicos (especialmente Peuhls, Mandingas, Haussa e Malês), grupos bantos de Angola e Congo e o grupo dos bantos da Contra-costa (Moçambique).

 

b) O tráfico de escravizados e a mescla de culturas africanas no Brasil

O desenvolvimento subsequente das diversas culturas dos africanos trazidos ao Brasil ocorreu de forma variada. Muitos são os fatores que influenciaram diretamente este desenvolvimento. Alguns fatores são decisivos: número de pessoas de uma determinada cultura, época de sua chegada ao Brasil, local de trabalho onde foram empregadas estas pessoas e número de escravizados de uma determinada cultura que permaneceu junto no Brasil.

O primeiro fator é lógico: quando maior o número de pessoas duma determinada cultura, maior a chance desta cultura ter continuidade. O segundo fator - época de chegada ao Brasil - é especialmente importante no que se refere à continuidade da cultura: quanto mais cedo um grupo foi trazido ao Brasil, tanto menor a chance de sua cultura ter tido continuidade. Os primeiros grupos de escravizados trazidos ao Brasil foram espalhados num território enorme, onde praticamente não mais existia a chance de manter contatos entre si. Também faltavam os meios para contatos bem como lugares de encontro (p. ex.: cidades ou vilas). A baixa taxa de natalidade, a alta taxa de mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida dum escravizado são outros pontos importantes que dificultaram a tradição da cultura. A taxa de mortalidade entre os escravizados sempre superava a de natalidade.

Quanto ao local de trabalho dos escravizados, existiam duas grandes categorias de escravizados: os escravizados do campo e os da cidade. Escravizados da agricultura, da extração de ouro e escravizados domésticos eram ainda subgrupos dos escravizados do campo. Os escravizados da agricultura e da extração de ouro, que formaram três quartos do total de escravizados no Brasil, não tinham quase nenhuma chance de dar continuidade à sua cultura. Nem à vida puderam dar continuidade. Eram praticamente só homens empregados nestas tarefas e por causa da dureza do trabalho, eles estavam em poucos anos literalmente desgastados. Para os escravizados domésticos as condições de trabalho não eram tão duras e existia, de forma limitada, possibilidades de se manter um relacionamento fixo entre os escravizados. A cultura pode ter aqui continuidade, apesar do pequeno número de escravizados domésticos. Entre os escravizados da cidade havia diversos grupos: os trabalhadores manuais, os escravizados domésticos, os especializados e os chamados "negros de ganho". As condições de vida dos escravizados urbanos não era tão dura quando as do campo. Os "negros de ganho" eram uma espécie de escravizados de aluguel. Eles eram emprestados para prestarem determinados serviços ou então enviados de casa em casa por seu dono para oferecer serviços ou vender algum produto. Muitos deles eram trabalhadores especializados. O lucro, ou uma determinada soma combinada anteriormente, deveria ser entregue ao dono. Estes escravizados gozavam de uma determinada liberdade, se comparada a sua condição com a dos escravizados do campo. Entre os escravizados urbanos houve melhores condições para a transmissão da cultura.

A influência destes dois fatores - época da chegada e local de trabalho - fica muito clara quando se analisa a continuidade da cultura banto e da cultura Iorubana no Brasil. Enquanto os escravizados banto foram trazidos em sua maioria mais cedo ao Brasil e espalhados principalmente no trabalho do campo, os escravizados Ioruba foram trazidos no final do tempo da escravização e ficaram na cidade (especialmente Salvador e Recife). Da cultura dos primeiros, menos se conservou, enquanto que dos outros foram conservados muitos elementos.

O tráfico de escravizados ocasionou para as culturas uma grande mistura ou até - muitas vezes conscientemente - confusão. Os africanos foram arrancados de um contexto cultural estável e simplesmente jogados em um novo contexto. A cosmovisão, a família, os valores, a hierarquia, a religião, as festas, as formas de produção, os costumes etc., tudo isso formava uma unidade numa sociedade e comunidade homogênea. Toda esta ordem agora não mais existe; como não existe também nenhuma possibilidade de recompô-la. Cada indivíduo está entregue a um destino incerto. Elementos ou restos da antiga ordem puderam ser reencontrados onde mais indivíduos provenientes de um único grupo cultural permaneceram juntos. As divisões das pessoas de seus grupos culturais ocorriam nas diversas etapas do tráfico de escravizados.

A primeira separação ocorria com a prisão de pessoas que seriam escravizadas. Não eram sociedades completas que eram arrancadas de seu contexto, mas apenas partes da sociedade, especialmente jovens e homens em sua grande maioria. Entre 70 e 80% dos escravizados africanos trazidos ao Brasil eram homens (diferentemente da América do Norte, que recebeu um número igual de homens e mulheres). Estes presos foram misturados nos portos africanos com outros procedentes de outros grupos culturais. Os compradores de escravizados, por sua vez, escolhiam a sua mercadoria utilizando diversos critérios. Aqui contava especialmente situação dos dentes, olhos, braços, pernas e órgãos genitais. Com estes critérios os compradores acreditavam poder obter escravizados com boa saúde, boa capacidade de trabalho e de reprodução. Os escravizados eram pagos por peça. Chiavenato (p. 123-124) afirma que nem sempre uma peça era um indivíduo no comércio de escravizados. Uma peça era um escravizado de 1,75 metros. Assim, por exemplo, cinco homens em idade entre 30 e 35 anos, que somavam juntos uma altura de 8,34 metros, foram pagos não como cinco peças, mas sim como 4,76. Dois negros, de 1,60 metros de altura cada, eram vendidos como 1,8 peça. Duas crianças entre 4 e 8 anos eram avaliadas como uma peça e assim por diante. Os escravizados da Costa da Mina eram trocados normalmente por tabaco e os de Angola por aguardente e produtos manufaturados.

Nos navios negreiros iniciava-se a triste aventura comum destas pessoas. Advindos de diversas culturas e línguas, eles eram empurrados juntos. A miséria comum levava a uma certa solidariedade entre os sobreviventes. Ninguém mais pode saber quantos dos presos na África de fato chegaram como escravizados às Américas. Sabe-se apenas que o número de presos para escravização na África é muito maior que o número dos que chegaram vivos aos mercados escravistas no continente americano. A única proteção de cada escravizado era ser ele próprio um valor econômico. A mortalidade nos navios era muito grande. Para evitar revoltas ou suicídios, os escravizados viajavam amarrados. A situação miserável de higiene provocava doenças. Os doentes eram jogados ao mar para não contaminar os outros. O apelido popular da época aos navios negreiros diz muito da realidade: tumbeiros. Para compensar as perdas pelas mortes, os navios eram sobrecarregados.

A chegada aos portos de escravizados do Brasil não significava de forma alguma o fim a triste viagem. Rio de Janeiro e especialmente Salvador eram grandes centros de compras de escravizados. Os recém-chegados ficavam à espera de compradores. Estes faziam suas compras conforme as necessidades: início de nova atividade, expansão das atividades ou - o que era comum - reposição de escravizados falecidos. O interesse do comprador era a lei maior. Assim famílias foram separadas, crianças arrancadas de suas mães. Nos mercados de escravizados acontecia então mais uma, a penúltima mistura de escravizados de diversas etnias e culturas. Critérios como cultura, língua, família ou parentesco eram utilizados também pelos compradores, ou seja, por medo de possíveis revoltas, os compradores evitavam adquirir escravizados de uma só família ou língua. Assim estes - para se entenderem entre si - eram obrigados a aprender o português, a língua do dono. Chegados finalmente ao seu local de trabalho, os escravizados eram misturados com os que lá já se encontravam. E com isso acontecia a última etapa do processo da grande mistura de povos africanos trazidos ao Brasil.

 

c) A vida dos escravizados no Brasil

Chegados ao seu local de trabalho, os escravizados eram obrigados a se acomodar à nova ordem social. Nesta nova ordem eles formavam uma única classe: a dos escravizados. Os africanos, vindos de sociedades completas, onde a subida ou descida na hierarquia não era a regra, mas uma possibilidade, onde a sociedade era uma unidade que se mantinha junta pela língua, religião, costumes etc., são agora reduzidos a uma subclasse. As tradições, passadas adiante geralmente por mecanismos comunitários, dependem agora apenas da ação de cada indivíduo. O africano trazido ao Brasil como escravizado, via rompidos todos os laços sociais, familiares e religiosos com os quais tinha crescido em sua sociedade de origem. Para os escravizados não havia possibilidade de deixar esta classe ou subir em alguma hierarquia. Deixar esta classe através do recebimento ou compra do título de liberdade é algo que ocorreu apenas tardiamente no período da escravatura. Por muito tempo havia apenas duas possibilidades de deixar a classe de escravizado: fugir ou morrer.

Embora o suicídio entre os povos assim chamados não-civilizados seja algo raro ou até um fenômeno inexistente (Durkheim), este ocorria com relativa frequência entre os escravizados no Brasil. Tirar a própria vida era uma forma de resistência. Os escravizados sabiam bem que podiam através do suicídio prejudicar o seu dono e souberam utilizar esta forma de vingança. Inclusive crianças chegaram a se suicidar. Curiosamente o número de suicídios era maior entre os escravizados de "bons donos". O suicídio não tinha apenas motivo político, mas também religioso. Através da morte havia a esperança de voltar à pátria dos pais, compondo a ancestralidade. "O suicídio (dos escravos) tem sua origem na mística", assegura R. Bastide (p. 119), acrescentando que "os elementos religiosos não podem fazer esquecer que estes surgiram sob o sofrimento e a resistência à escravidão". O suicídio também foi praticado como forma de vingança religiosa: através desta morte o escravizado transformava-se num espírito mau, que poderia perseguir e prejudicar seu senhor branco.

Uma outra forma de doença que custou muitas vidas de escravizados africanos era parecida com o suicídio: o banzo. O banzo era uma espécie de aguda saudade. Saudade no sentido religioso-místico-social. O banzo é a saudade ocasionada pelo grande sentimento de perda da ordem original. A ordem social do local de nascimento dos africanos, que não conheciam nenhuma divisão entre mundo secular e religioso, era um conjunto de valores religiosos, costumes sociais, tabus, possibilidades de desenvolvimento, locais místicos etc., que davam à vida sentido e destino. Muitos não aguentavam esta separação e morriam. O banzo era descrito como uma profunda tristeza e apatia. Os escravizados que aparentavam tristeza eram vigiados para que não provocassem o suicídio através da ingestão de terra ou mandioca venenosa. Os doentes de banzo não reagiam mais à dor, ao castigo, à fome ou sede e finalmente morriam desta doença.

A outra possibilidade de resistência era a fuga. A fuga era um empreendimento complicado e não muito promissor. Fugir para onde? Não havia terra de liberdade. A possibilidade de encontrar abrigo junto aos índios não era grande. Mesmo assim esta possibilidade foi utilizada. Muitos brancos também fizeram um bom negócio dando abrigo a escravizados fugitivos em troca da obrigação de trabalho gratuito. Havia leis rigorosas para evitar esta prática. Um outro fator que dificultava aos escravizados a fuga era a falta de conhecimento da geografia. Os africanos não conheciam a natureza desta terra, não sabendo de que frutos silvestres ou plantas poderiam se alimentar. Por isso os escravizados fugitivos tentavam permanecer às margens das vilas, sobrevivendo de pequenos roubos, o que os fazia presa fácil dos capitães-do-mato. Isto virou uma espécie de profissão no tempo da escravização: Capitães-do-mato eram aquelas pessoas contratadas pelos senhores para caçar escravizados fugitivos. Cada um tinha uma espécie de milícia particular sob seu comando.

A única forma promissora de fuga era a organizada. Através de fugas organizadas, os escravizados formaram comunidades em locais de difícil acesso, chamadas de quilombos ou mocambos. A palavra quilombo é provavelmente originária da língua kimbundu (sul de Angola) e significaria a forma móvel de povoações do povo Imbangala. A palavra mocambo é também de origem africana e significaria esconderijo. A formação destas comunidades de escravizados fugitivos não é um fenômeno ocorrido apenas no Brasil. Em muitos outros países com sistema escravocrata também houve tais comunidades, chamadas por exemplo em Cuba de palenque, na América do Norte de maroon e nas colônias francesas de le marronage.

Durante todo o tempo da escravização deve ter havido centenas de tais comunidades. Já em 1575 há notícias de uma tal comunidade na Bahia. A maioria destas comunidades era pequena, de curta duração, com pouca organização política ou social e foram assaltadas e destruídas pela sociedade oficial da colônia. Os quilombos mais estáveis formavam uma sociedade alternativa e africana no Brasil. Eles foram temidos e fortemente perseguidos, não apenas porque traziam o perigo de possíveis assaltos, mas principalmente porque ofereciam aos escravizados uma real alternativa. Os negros presos nos quilombos eram castigados de forma exemplar, isto para diminuir a atração que os quilombos exerciam sobre a população de escravizados.

O maior e mais conhecido quilombo foi Palmares. Palmares é sem dúvida a organização de resistência mais significativa do tempo da escravização. O início de Palmares se deve a uma revolta bem sucedida dos escravizados de um engenho em Pernambuco no final do século XVI. Este grupo fundou uma povoação que foi crescendo e se tornou aos poucos numa república negra, embora brancos e índios também morassem em Palmares. Era local de refúgio para pessoas de todas as classes. A desorganização da colônia durante as invasões holandesas proporcionou a muitos escravizados ocasião de fuga; escravizados estes que se reuniram em Palmares. Ao final da ocupação holandesa (1654), Palmares era uma povoação significativa e organizada com mais de 20 mil habitantes (15% da população conhecida da colônia) divididos em diversas localidades, num raio de 350 quilômetros (à época pertencente à capitania de Pernambuco, hoje estado de Alagoas, município de União dos Palmares). Mais de 40 expedições militares foram feitas contra Palmares, tanto por parte dos holandeses como dos portugueses. Palmares era porém uma república economicamente independente e militarmente forte. Em 1678 houve inclusive um tratado de paz entre Palmares e a colônia portuguesa. Uma sensação para a época! Provavelmente este tratado de paz não foi aceito por uma facção de Palmares. O fato é que não houve paz entre Palmares e os portugueses. Depois de muitas derrotas, uma tropa portuguesa de 9 mil soldados (só na luta pela independência, cem anos mais tarde, reuniu-se no Brasil uma tropa tão numerosa) tomou Macaco, capital dos Palmares, em 1694. Houve um grande massacre. 510 pessoas foram presas. O líder de Palmares, Zumbi, pode fugir com um grupo e foi morto um ano mais tarde, a 20 de novembro de 1695. Com isso Palmares não estava totalmente destruída, mas nunca mais pode se reerguer. Mais de cem anos Palmares resistiu à dominação branca (portugueses e holandeses) e apesar de sua destruição, permaneceu para a história como um sinal de resistência e a memória de seu líder, Zumbi, é lembrada com cada vez mais importância.

Palmares acolheu negros de diversos povos, de modo que a língua utilizada para o entendimento era o português. Nas localidades de Palmares havia igrejas (locais de culto) e foram encontradas estátuas de santos católicos (São Brás e Nossa Senhora da Imaculada Conceição). Isto levou à suposição de que em Palmares praticou-se o catolicismo. É difícil comprovar isto ou o contrário. A presença de sacerdotes católicos em Palmares é inclusive citada por escrito. Não se trata provavelmente de nenhuma iniciativa oficial da Igreja. A Igreja percebeu a importância dos quilombos como meio da vontade de liberdade dos negros e por isso os combateu como perigo à sociedade. A assistência religiosa que teria havido nos quilombos deve-se mais provavelmente a pedidos dos negros, que a iniciativas da Igreja. R. Bastide (1989, p.131-140) é da opinião que a religião de Palmares tivesse sido uma mistura de religiões africanas, havendo também elementos católicos, tendo sido apenas estes reconhecidos por pessoas vindas de fora. Através dos quilombos, as religiões dos negros entraram em contato com as práticas religiosas indígenas. Estes africanos tinham, porém já incorporado práticas religiosas cristãs, de modo que R. Bastide supõe que nos quilombos já existiam elementos de religiões chamadas hoje de religiões afro-brasileiras. Índios missionados mais tarde por brancos conheciam já algumas palavras em português e elementos cristãos.

"Os quilombos foram um fenômeno de resistência de uma civilização que não quer morrer" (BASTIDE, 1989, p.138). A história de Palmares comprova, que os negros não aceitaram passivamente a escravização e a humilhação.

Para os senhores, os escravizados não contavam como pessoas de pleno direito, mas sim como objetos ao lado de outros pertences. Esta classificação dos escravizados fica muito clara em alguns anúncios de jornais da época (BERGMANN, p. 44-45):

"No escritório de Joaquim Pereira Marinho se vende belo escravo pardo, excelente cocheiro. No mesmo escritório se vende um dos melhores cavalos desta cidade, cinza claro, muito dócil" (Correio da Manhã - 17 de setembro de 1846).

"G. A. Blosen vende ou aluga sua casa, rua Canella, com uma mulata, e a Enciclopédia Britânica de 26 volumes, obra mais perfeita que existe" (Jornal da Bahia - 30 de setembro de 1854).

"Espíndola e filhos compram ações do Banco da Bahia e escravos de 10 a 15 anos" (Jornal da Bahia - 11 de setembro de 1859).

Animais, escravizados e objetos são citados da mesma forma. Da mesma forma são tratados os escravizados em situações como processos ou testamentos: Eles são listados aos pertences junto a animais, instrumentos agrícolas ou móveis. Às vezes fica inclusive difícil de se distinguir se se trata de um escravizado ou de um animal:

"Na rua do Paço, compra-se uma cabra de leite que seja boa. Se for, o preço será bom " (Jornal da Bahia, 1º de outubro de 1859).

Neste anúncio não mais se distingue se se trata do animal cabra, ou de uma escrava, que, segundo o costume português, amamentava os filhos pequenos dos senhores, e que era chamada também de cabra de leite. Este nivelamento de escravizados com animais não é uma atitude casual de algum senhor maldoso, mas sim a classificação oficial através do estado. Nas leis portuguesas "Ordenações Manuelinas" de Felipe I em 1580, a regulamentação sobre compra e venda de escravizados encontra-se sob o capítulo que regulava a venda de gado. Esta concepção foi defendida pelo jurista Barros Lobra no parlamento nacional ainda no ano de 1870: "O fruto do ventre da escrava pertence ao senhor desta, tão legalmente como a cria de qualquer animal do seu domínio!" (BERGMANN, p. 45).

Que todos os senhores tenham tratado seus escravizados como animais de trabalho é improvável. Houve senhores que trataram bem seus escravizados e há notícia inclusive de senhores que pagavam o trabalho dos escravizados. Também houve entre escravizados e senhores relacionamento de confiança e respeito mútuo, especialmente nos casos onde escravas criaram e educaram os filhos dos senhores. Os casos de bom relacionamento entre senhores e escravizados são, porém exceção. Quando se leva em conta, que um escravizado africano sobrevivia em média 5 a 7 anos após sua chegada ao Brasil, fica claro o nível de brutalidade a que estes eram submetidos. O tratamento dos escravizados melhorou sensivelmente após 1850, com o final do tráfico entre África e Brasil. Os senhores notaram, que no futuro seria difícil conseguir novos escravizados. Motivos econômicos levaram a um tratamento mais humanitário.

O tratamento dado aos escravizados também era diferenciado conforme o tipo de escravizados. Como já foi citado, havia diversos tipos de escravizados. Dois terços do total de escravizados trabalharam na agricultura e extração de ouro. A vida no campo era marcada por uma dura rotina. Tinham que se levar pelas 5 horas e eram levados ao trabalho, onde permaneciam até o sol se por. Ao meio-dia e à noite havia refeições principais. Segundo Os escravizados recebiam na refeição geralmente um pedaço de carne seca e uma xícara de farinha de mandioca. À noite os escravizados do campo eram recolhidos às senzalas, uma mistura entre estábulo e prisão. Nas cidades, os escravizados passavam a noite geralmente no sótão da casa. Qualquer tentativa de fuga podia assim ser melhor controlada. Os grandes engenhos possuíam em média 100 escravizados e nas plantações de café do séc. XIX a média de escravizados por senhor era ainda maior. Neste tempo não era raro encontrar um senhor com mais de mil escravizados. O sistema agrário de grandes plantações dominava o país financeira e politicamente. Relatórios mostram, porém que a grande maioria dos senhores possuía um pequeno número de escravizados. No ano de 1702 o rei português ordenou que os agricultores da província do Rio de Janeiro que possuíssem menos de 6 escravizados, plantassem mandioca ao invés de cana-de-açúcar. A administração da província noticiou ao rei que se esta medida fosse cumprida, a produção de açúcar da província seria totalmente arruinada, pois a grande maioria dos agricultores tinha menos de seis escravizados ao seu dispor. Uma estatística do ano de 1738 do distrito de Serro Frio fala de 1.788 proprietários de escravizados e dum total de 8.167 escravizados, ou seja, uma média de menos de 5 escravizados por proprietário. Destes 1.788 proprietários de escravizados, apenas 13 possuíam mais de 40 escravizados.

Para a transmissão das tradições africanas no grupo dos negros, o pequeno número de escravizados por proprietário não representa nenhuma vantagem. Pelo contrário. "A grande plantação, onde o número de escravos era bastante considerável, para que inter-relações se estabelecessem com o senhor, possibilitou, por conseguinte, numa certa medida, a perpetuação dos valores africanos" (BASTIDE, p. 71). Decisivo não é a existência da plantação, mas o número de africanos. Onde o número de escravizados era pequeno, não havia a possibilidade da formação de subgrupos, nos quais os grupos culturais se reorganizavam e onde a língua, os costumes e usos podiam ser cultivados. Estes subgrupos de escravizados reconstituíam de certa forma a ordem social africana.

Neste ponto mostra-se como os escravizados urbanos foram importantes para a conservação e transmissão das tradições africanas. Esta livre associação de tais subgrupos foi sobretudo cultivada pelos "negros de ganho". Eles formavam os chamados cantos, onde - como a palavra já diz - as tradições africanas foram mantidas vivas e transmitidas através de canções. Os "negros de ganho" eram enviados durante o dia para a rua a fim de ganhar algo de diversas maneiras. À noite eram obrigados a entregar ao senhor o lucro do dia ou uma determinada quantia previamente determinada. O escravizado poderia ficar para si o que ganhasse a mais (aos escravizados era permitido bens, só não terras). Os mais hábeis para os negócios podiam desta forma reunir uma certa soma e comprar a sua própria liberdade. Ex-escravizados tiveram um papel muito importante na conservação e transmissão das religiões africanas no Brasil. Eles aos poucos foram comprando a liberdade de outros membros de seu povo e formando com isso pequenas comunidades. Eles reuniam-se em casas simples e preocupavam-se com novos membros e líderes religiosos. O aumento do número de negros livres especialmente durante o século XIX permitiu uma melhor organização das tradições africanas. Aos negros livres pertenciam especialmente os escravizados nascidos no Brasil. Poucos dos escravizados trazidos da África conseguiram a liberdade no Brasil.

A taxa de natalidade entre os escravizados no Brasil era muito baixa. O motivo principal era o já citado pequeno número de mulheres. Além disso três outros fatores contribuíram para a baixa taxa de natalidade. Primeiro a interrupção da gravidez. Muitas escravas não queriam gerar filhos para a escravização. Em segundo lugar a taxa de mortalidade infantil era muito alta devido às péssimas condições de vida dos escravizados. No século XIX, nas regiões de plantação de café, estima-se que a taxa de mortalidade infantil entre os filhos de escravas era de 88%. Em terceiro lugar uma relação estável entre escravizados com a formação de famílias era praticamente proibida pelos senhores. Simplesmente não havia condições para famílias com muitos filhos. Reinava também uma grande promiscuidade, pois era comum senhores brancos abusar sexualmente de suas escravas. Destas relações nasceram muitos mulatos. Segundo a lei, os mulatos eram - como suas mães - escravizados, mesmo quando o próprio proprietário fosse o pai. Muitos mulatos receberam a liberdade como presente de batismo dos padrinhos ou do senhor (que era muitas vezes o pai). Assim, muitos dos negros livres eram na verdade mulatos. Estes eram praticamente os únicos ex-escravizados que tinham alguma chance de subir na sociedade. Muitos deles receberam de seus pais brancos uma boa formação, especialmente nos casos do pai ser sacerdote. A ascensão social só era bem sucedida, porém quando estes mulatos deixavam de lado os valores de sua origem africana e assumiam os valores e ideais da sociedade europeia. Estes mulatos não contribuíram muito na manutenção e transmissão das tradições africanas no Brasil.

O número de negros ou mulatos livres subiu muito especialmente no séc. XIX (embora neste período também o número de escravizados tenha subido enormemente). O número de negros ou mulatos livres no ano de 1798 é calculado em 406.000 (contra 1.582.000 escravizados), no ano de 1817 o número de 585.000 (contra 1.930.000 escravizados) e no ano de 1847 1.280.000 livres (contra 3.120.000 escravizados).

A partir de 1850 o número de escravizados foi diminuindo rapidamente, por um lado por causa do fim do fornecimento da África e da alta taxa de mortalidade entre os escravizados, por outro lado pelo número cada vez maior de escravizados que conseguiam sua liberdade. Esta liberdade era conseguida de diversas formas: compra do título de liberdade (pela própria pessoa ou através de grupos de ajuda), fuga, participação na Guerra do Paraguai, "lei do ventre livre" (1871) ou "lei do sexagenário" (1885). A difícil situação financeira de pequenos agricultores não mais lhes permitia a manutenção de escravizados.

Ao lado da pressão internacional pelo fim da escravatura, crescia no Brasil o movimento abolicionista. Este movimento aparece no Brasil por volta de 1830, com a discussão em torno do fim do tráfico de escravizados entre África e Brasil. No início era um movimento pequeno, sustentado sobretudo por brancos e intelectuais. Para estes, a escravização era o principal motivo do atraso econômico do país. Este movimento encontrou apoio na maçonaria. Este grupo formava uma certa elite que foi mais tarde a principal responsável pela proclamação da república (1889). Rui Barbosa, um dos proeminentes políticos do início da república, já havia em 1868 exortado as lojas maçônicas a não aceitar nenhum membro que não se comprometesse a libertar o ventre de suas escravas.

Somente na última década da escravização, o abolicionismo tornou-se um movimento popular e chegou até os escravizados do campo. Muitos proprietários ou instituições deram a liberdade a seus escravizados através da pressão ou conscientização do movimento abolicionista. O Ceará declarou em 1884 que eram livres todos os escravizados que viviam no estado. Por outro lado havia resistência contra a abolição, especialmente nos estados cafeeiros (especialmente São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro).

Pela assinatura da lei que extinguia a escravização a 13 de maio de 1888, receberam a liberdade 723.419 escravizados. Eles formam já uma minoria (5,6% da população brasileira).

Especialmente durante o séc. XIX cresceu no Brasil a mistura de povos. O número de mulatos cresceu rapidamente. Enquanto em 1798, os mulatos formavam 12,5% da população, esta participação cresceu para 34% em 1850 e 41% em 1890. Em 1980 esta participação de mulatos era de 38,5% enquanto o número de negros era de 6%. Isto significa que quase a metade da população do país tem origem africana.

A abolição da escravatura, que ocorreu passo a passo, pode ser considerada um avanço, mesmo quando se sabe que fatores econômicos tiveram grande influência. A abolição é, porém um fato positivo. É de se observar também que a abolição não significou diretamente nenhuma melhora imediata na vida dos então ex-escravizados. Também não significou nenhuma mudança na estrutura de poder nem na estrutura agrária do país. A maioria destes novos cidadãos do país tinha pouca chance na concorrência direta com os novos imigrantes europeus. A liberdade almejada e agora conquistada transformara estes negros primeiramente num proletariado miserável. À abolição seguiu uma total desorganização dos ex-escravizados.

Uma nova organização precisava de pontos de referência. Esta possibilidade foi oferecida pela religião, tornando-se esta um elemento-chave para o reagrupamento dos africanos e seus descendentes no Brasil. Não apenas as irmandades católicas, que continuaram a existir após a abolição e nas quais os negros eram membros ofereciam-se como pontos de referência, mas aumentava também o número de terreiros, embora a prática de ritos de origem africana e indígena era proibida por lei e os criminosos obrigados a pagar multa, além da possibilidade de prisão por seis meses. A partir de 1910, o movimento pentecostal também serviu de ponto aglutinador.

As relações religiosas não foram mudadas com a abolição. A convivência de religiões - e às vezes até confusão de religiões -, onde o catolicismo era praticado como religião oficial e as tradições africanas praticadas apesar da proibição, esta situação continuou a existir após a abolição. Se a abolição da escravatura modificara totalmente a forma econômica e a situação política dos africanos, não pode substituir as tradições africanas pela prática do catolicismo. A tentativa de fazer com que os escravizados fossem todos católicos, deixou porém marcas profundas.

 

2.3 A catolicização forçada dos escravizados

Era evidente que a única religião permitida no Brasil colônia era o catolicismo. Ser português significava sem exceção ser católico. Outra possibilidade não estava à disposição. Esta pertença religiosa foi transferida para os escravizados, que não estavam porém na mesma situação cultural que os portugueses, já cristianizados há séculos. Também não foi tentado - tirando poucas exceções - criar condições para uma cristianização dos africanos no Brasil. A conversão era simplesmente obrigatória, se é que podemos falar de conversão. E esta se resumia ao batismo. E este não era acompanhado de qualquer catequização. O máximo que se fazia era ensinar aos escravizados o comportamento correto durante a missa ou algum ato religioso, bem como o uso de expressões católicas usadas no dia a dia, como o “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado”.  As autoridades civis e religiosas tinham alguma preocupação com a fé os escravizados. Diversas medidas tomadas mostram que a questão não havia sido esquecida. No projeto de estatuto para a fundação de uma companhia de comércio de escravizados aparece claramente esta preocupação para com a fé dos africanos:

Será tomado o maior cuidado para recrutar capelães para os navios e as feitorias, que são os padres cheios de amor e de caridade ao próximo, mesmo se, para obtê-los, deva-se-lhes oferecer os maiores emolumentos. Ser-lhes-á recomendado que nenhum escravo seja embarcado sem ter sido batizado com um cuidado vigilante, a fim de que nenhum dentre eles morra sem ter recebido o batismo, que é o maior serviço que os enviados de Deus e todas as pessoas que trabalham no tráfico dos escravos podem prestar à glória de Deus (REHBEIN, p. 63).

Esta preocupação com o batismo acompanhou todo o tráfico de escravizados. Os escravizados de Angola foram normalmente batizados antes já de sua partida para o Brasil. Por determinação do rei de Portugal Dom João III, no séc. XVI, todos os escravizados vindos de Angola deveriam ser marcados com um ferro quente. Esta marca servia de comprovação do pagamento do imposto real (20%) e do batismo. A partir de 1813 esta marca foi substituída por uma argola de ferro ao pescoço. Uma lei de 1756 obrigava todos os navios do tráfico de escravizados de ter um capelão a bordo. Este capelão deveria dar catequese aos africanos e batizá-los em caso de perigo de vida, de modo que nenhum pagão pisasse em solo brasileiro.

Para escravizados advindos de outras regiões da África havia um prazo de um ano após sua chegada ao Brasil para serem batizados. Aos proprietários que não providenciassem o batizado ameaçava a prisão por 30 dias e multa. O batismo era pois uma obrigação imposta pelo Estado. Os escravizados não batizados no prazo determinado poderiam ser declarados propriedade do Estado. Esta legislação complementar fazia com que o proprietário que não batizasse o escravizado por convicção, deveria fazê-lo por motivo econômico. A preocupação das autoridades com o batismo dos africanos não é expressão da piedade dos que dirigiam o Estado. A Igreja Católica era a única - e estatal - organização religiosa e com isso era parte do Estado, cabendo à direção do Estado prover pela Igreja. O rei João de Portugal recebera do Papa no ano de 1551 para sempre o título hereditário de Grão-mestre da Ordem de Cristo. Com isso o rei era responsável pela expansão da fé, nomeações de bispos, administração dos bens eclesiais e supervisão dos tribunais eclesiásticos, a chamada lei do padroado.

Apesar desta grande preocupação com o batismo dos escravizados africanos, a preocupação com a fé dos mesmos ficou aquém das possibilidades de então. Quando observamos os meios e as forças colocados à disposição na missão dos índios como, por exemplo centros de missão, escolas, reduções, catequese, número de missionários etc., fica claro que a missão dos africanos no Brasil recebeu menos atenção e dedicação.

A missão era fortemente marcada pela adaptação dos africanos ao sistema religioso. Tentava-se ensinar, dentro das possibilidades, as formas rituais. A vida na colônia era ritmada pelo catolicismo, tanto no dia a dia, como no seu calendário anual. A este catolicismo adaptaram-se (ou foram adaptados) os africanos, o que trazia também algumas vantagens aos escravizados. Assim eles foram poupados do trabalho pesado aos domingos e nos numerosos dias santos de guarda. Os escravizados participavam também das grandes festas religiosas católicas como Natal e Páscoa. Por outro lado a religião servia também como meio de disciplina nas fazendas. Esta disciplina apoiava-se em duas colunas: o feitor e o capelão. Um controlava o trabalho com o chicote, o outro enfraquecia o espírito de resistência com a cruz.

A cristianização forçada dos escravizados mostra de forma exemplar a atitude da sociedade branca (e católica) de então para com os africanos. Por um lado os escravizados eram obrigados a ser cristãos, eram batizados, obrigados a participar dos ritos e comportar se como católicos. Por outro lado, uma integração completa na comunidade dos fiéis não era permitida, pois para isso não eram postos meios à disposição da catequese. Nos planos de catequese dos bispos aparecia mencionada a necessidade de catequese aos negros. Na verdade, porém esta catequese não foi feita de forma sistemática, mas ocasional. Somente na Bahia foi tentada uma catequese sistemática para os negros.

Uma melhor integração dos negros no catolicismo fracassou no entanto não apenas por conta da falta de uma boa formação religiosa (uma boa formação religiosa para os brancos também nem sempre era garantida). Esta integração foi impedida ainda pelo fato de os negros terem sido considerados em todos os lugares, católicos de segunda categoria. Muitas das igrejas e capelas eram construídas com uma nave e um alpendre. Os lugares na nave eram reservados aos brancos. Os negros permaneciam no alpendre e assistiam a missa através das janelas e porta. A arquitetura mostra exemplarmente a situação dos negros na Igreja: por um lado ligados, por outro lado separados. Uma adaptação dos negros a esta situação era desejada, uma integração completa rejeitada.

Outro lugar, onde a mesma situação de meia integração também aparecia, eram as irmandades. Estatutos de muitas irmandades de brancos impedia a filiação de negros ou mulatos. Isto valia especialmente para as irmandades mais aristocráticas (como p. ex. a da Terceira Ordem de São Francisco). Com isso os negros fundaram irmandades próprias e tentavam através desta organização adquirir mais peso na instituição Igreja. Com estas irmandades havia dois tipos de Igreja: a dos negros e a dos brancos. A dos negros tentava tomar sempre um pouco de espaço na Igreja, enquanto a dos brancos fechava-se cada vez mais. Assim existiam eternas controvérsias sobre diversos assuntos, como por exemplo, qual a irmandade tinha o direito de abrir esta ou aquela procissão, em que ordem as irmandades deveriam compor as procissões de enterro e assim por diante.

O fechamento das organizações eclesiais dos brancos frente aos negros deixa claro, que a sociedade branca não estava preparada para dar lugar aos negros. Do lado dos negros, a formação de irmandades próprias contribuiu para a formação da consciência de grupo. Nas irmandades os negros encontravam-se entre si e deram assim início a um catolicismo popular negro, com santos protetores próprios e uma forma própria de festas. Este catolicismo popular negro baseava-se principalmente no culto aos santos, culto este que não acontecia apenas nas igrejas, mas também nas casas. Era um catolicismo de uma subclasse, que apesar da falta de formação religiosa, desenvolveu expressões próprias de fé. Não se sabe exatamente quando foi iniciado este catolicismo popular negro. Há, porém notícias de festas de São Benedito, o preto, e de Nossa Senhora do Rosário (principais patronos dos negros) em capelas de engenhos no ano de 1711, embora a veneração de São Benedito, o preto, tenha sido permitida pela Igreja apenas no ano de 1743 e sua beatificação tenha ocorrido somente no ano de 1807.

A formação de irmandades destes negros "catolicizados" à força teve um papel preponderante na transmissão das tradições religiosas africanas e no surgimento do sincretismo afro-católico.

Pertencia à estratégia do trabalho missionário dos religiosos com os índios - especialmente dos jesuítas - conservar alguns costumes destas culturas, que pudessem ser utilizados na catequese, e combater fortemente outros. Assim por exemplo algumas danças religiosas indígenas foram conservadas e seus textos substituídos por textos marianos, enquanto os pajés (autoridades religiosas indígenas) foram fortemente combatidos. Esta mesma estratégia também foi utilizada em relação às confrarias dos negros, talvez no entanto não tão sistematicamente. Se isto contribuiu para o objetivo missionário é discutível. Fato é, que esta estratégia favoreceu o surgimento do sincretismo afro-católico e a conservação de tradições africanas. O limite entre costumes ortodoxos e não-ortodoxos nem sempre foi claro e muito menos controlável.

A língua formava uma outra proteção aos costumes. Quando os africanos utilizavam sua língua materna, o sacerdote não mais podia acompanhar os acontecimentos nas reuniões dos negros. Em todos os lugares onde existiram irmandades de pretos, também sobreviveram as religiões africanas. Isto aconteceu também no Uruguai, Argentina, Peru e Venezuela. E as religiões africanas desapareceram nestes países quando a Igreja proibiu as reuniões de dança das irmandades após a missa.

Quantas vezes notamos no Nordeste que essas confrarias de negros são compostas das mesmíssimas pessoas que frequentam o Candomblé e aí ocupam importantes cargos hierárquicos. Por conseguinte, a Igreja sem o querer, ajudou a sobrevivência dos cultos africanos. A confraria não era evidentemente o  Canbomblé, mas constituía uma forma de solidariedade racial que podia servir-lhe de núcleo e continuar em Candomblé com o cair da noite (BASTIDE, p. 79).

As confrarias ofereciam espaços, nos quais os negros encontravam lugar tanto para sua cultura, como um lugar na sociedade e Igreja. Isto não só para indivíduos, mas também para grupos. Como indivíduo, conseguir um lugar na sociedade ou na Igreja, especialmente na hierarquia, era para um negro na época da escravização praticamente impossível. Os negros - também os livres - não podiam no tempo da escravização entrar nas ordens religiosas ou almejar o sacerdócio. Assim a Igreja era e permaneceu para os negros uma propriedade quase que exclusiva dos brancos.

Os negros não ofereceram nenhuma resistência aberta contra a catolicização forçada e nem tinham chances de fazê-lo. Pelo contrário: os negros desejavam o batismo. Ser batizado era subir um degrau na sociedade, não mais ser injuriado como pagão, nem mais ser tratado pelos brancos como animal sem alma. Também ser membro de uma irmandade propiciava aos negros uma reputação melhor na sociedade de então.

Muitos exemplos dão testemunho que negros assumiram a fé católica e a viveram. Mas de modo algum se pode falar generalizadamente de uma conversão dos negros ao cristianismo. Já no século passado falava-se na "ilusão da catequese". A cristianização dos negros fracassou mais por motivos de falta de empenho dos brancos, que pela resistência religiosa oferecida pelos negros. Os senhores proprietários não estavam interessados numa catequese dos negros. Seu interesse principal estava voltado ao corpo dos negros e sua força-de-trabalho. Além disso, uma cristianização dos negros poderia elevá-los à mesma condição religiosa dos brancos. O zelo inicial principalmente dos jesuítas pela catequese dos negros esmoreceu com o tempo e diante da resistência passiva dos senhores de escravizados.

Esta tarefa da catequese dos negros tampouco foi assumida pelos sacerdotes. No campo - onde havia até uma certa disposição para esta tarefa - as distâncias faziam qualquer trabalho sistemático de catequese quase impossível. Onde o sacerdote não podia visitar os engenhos mais que uma vez por ano, não se pode falar numa possibilidade de catequese. Nas cidades, os sacerdotes - com exceção dos religiosos - estavam ocupados com outras coisas. O sacerdócio era exercido como atividade secundária. Um relato da época sobre o clero não-regular de Minas Gerais, dá conta que os sacerdotes somente celebravam a missa dominical e ouviam as confissões dos fiéis antes da Páscoa. No resto do tempo estavam ocupados com outras profissões. Alguns eram negociantes, outros advogados; alguns tinham minas de ouro, outros engenhos; outros estavam ocupados inclusive no contrabando de ouro ou de pedras preciosas. Que sacerdotes andassem publicamente com suas concubinas e filhos não chocava a sociedade de então.

O trabalho de missionar entre estas pessoas trazidas da África perdeu-se assim pelo caminho. A cristianização (forçada) limitou-se à superficialidade. Assim o catolicismo apenas envernizou o comportamento religioso público destas pessoas. Em termos de conteúdo, a doutrina cristã não substituiu as tradições africanas, que foram passadas adiante com o leite materno.

Uma descrição de R. Bastide (p. 72-73) apresenta de forma plástica qual era a aparência comum deste catolicismo forçado:

Diante do modesto altar católico erigido contra o muro da senzala, à luz trêmula das velas os negros podiam dançar impunemente suas danças religiosas tribais. O branco imaginava que eles dançavam em homenagem à Virgem ou aos santos; na realidade, a Virgem e os santos não passavam de disfarces e os passos dos bailados rituais cujo significado escapava aos senhores, traçavam sobre o chão de terra batida os mitos dos orixás e dos voduns... A música dos tambores abolia as distâncias, enchia a superfície dos oceanos, fazia reviver um momento a África e permitia, numa exaltação ao mesmo tempo frenética e regulada, a comunhão dos homens numa mesma consciência coletiva.

            As fronteiras religiosas pouco claras entre catolicismo e tradições religiosas africanas trazidas para o Brasil são tênues desde os tempos coloniais.

 

2.4 A Igreja Católica frente à escravização

A posição da Igreja institucional diante da escravatura não se pode em geral separar da posição do Estado. A Igreja participou de tudo o que foi decretado pelo governo português e brasileiro (após a independência) a respeito da escravatura. Também não se poderia esperar uma outra atitude, pois pelo regime do Padroado o rei português e mais tarde o imperador brasileiro agiam como delegados do papa e tinham poderes e responsabilidades especiais na Igreja do país, tanto no que dizia respeito à expansão da fé, como também na administração dos bens eclesiásticos, nas nomeações episcopais e na fundação de novas circunscrições eclesiais (dioceses, paróquias, etc.). Teoricamente o rei tinha o direito de fazer sugestões a Roma no tocante à administração da Igreja no Brasil. Na prática, o rei quase sempre decidiu por conta própria e a Roma não restava outra opção que a de ratificar as decisões. De fato o rei agia como chefe da Igreja. Assim sendo, não se pode esperar da Igreja institucional uma posição diante da escravatura que fosse diferente ou independente da do Estado a quem estava submetida.

As únicas instituições eclesiais que podiam gozar de alguma liberdade perante o Estado eram as ordens religiosas. Esta certa liberdade diante do Estado devia-se, sobretudo à independência financeira destas ordens. Enquanto o clero secular era sustentado pelo Estado, os religiosos sustentavam-se através da produção de suas terras. Não só, mas também esta independência financeira é que possibilitou a posição firme dos religiosos contra a escravização dos índios. Para o tempo de então, independência financeira era sinônimo de exploração de trabalho escravo. Muitas vezes as ordens possuíam escravizados; e não poucos. Na lista dos bens da Fazenda Santa Cruz (perto do Rio de Janeiro), que pertencia aos jesuítas e após a expulsão destes do Brasil (1759) caiu nas mãos do Estado, constam 1.205 escravizados. Na lista dos bens tomados pelo Estado aos mercedários após sua expulsão da região do Pará (1794) constam 375 escravizados. Quase todas as ordens religiosas no Brasil eram latifundiárias, o que as ligava a um certo status social e à posse de inúmeros escravizados.

A instituição Igreja não explorava ela mesma o tráfico de escravizados, mas não se pode dizer que estivesse totalmente ausente deste comércio. Havia, por exemplo, troca de escravizados entre as casas dos jesuítas (em Angola, Portugal e Brasil). Além disso também pagavam dívidas com escravizados em Angola. Esta prática foi proibida pelo superior geral da Companhia de Jesus em 1590. A esta proibição, os jesuítas de Angola responderam: "Não é escandaloso de pagar as nossas dívidas em escravizados, pois eles são a moeda corrente no país, assim como o ouro e a prata o são na Europa e o açúcar no Brasil". Com o passar do tempo, o sistema escravista tornou-se algo aceito por todos, inclusive pela Igreja em geral.

Vozes advindas dos círculos eclesiásticos contra a escravização dos negros eram algo um tanto raro. A Igreja manteve uma posição firme contra a escravização dos índios. Esta foi condenada pelo Papa Paulo III na bula Veritas ipsa em 1537 e legalmente proibida pelo Estado português em 1566. Quanto aos negros a situação é diferente. Algumas das poucas vozes advindas de círculos eclesiásticos contra a escravização de negros temos nas figuras de dois padres jesuítas ainda no século XVI. Padre Gonçalo Leite, o primeiro professor de filosofia do Brasil, defendia a ideia de que nenhum escravizado, seja na África, seja no Brasil, é preso de forma legítima. Em sua tese não estavam interessados nem a Companhia de Jesus nem a colônia. E ele foi transferido de volta a Portugal em 1586. Seu confrade, Padre Miguel Garcia, protestou contra a posse de escravizados através da Companhia de Jesus: "A multidão de escravos que tem a Companhia nesta província, particularmente neste colégio, é coisa que de maneira nenhuma posso tragar, máxime por não poder entrar no meu entendimento serem licitamente havidos". Também ele foi transferido de volta a Portugal (1583). Estes dois casos são típicos para dar um retrato da situação da sociedade brasileira daquele tempo: A alternativa não era entre possuir ou não escravizados, mas sim entre permanecer no Brasil ou não. A escravização tornara-se estruturalmente tão fundamental no sistema da colônia, que o Brasil não mais se manteria sem ela.

Os dois jesuítas acima citados, também haviam colocado em dúvida a validade da confissão para proprietários de escravizados, pois não estavam convencidos da legitimidade desta posse. Esta opinião desencadeou uma grande discussão entre o clero e o caso foi levado aos peritos em doutrina e moral da Mesa da Consciência em Lisboa. Esta foi unânime da opinião que era legítimo possuir prisioneiros (escravizados). O Brasil colônia e a sua Igreja, com o tempo foram acostumando-se à realidade do sistema escravista. A escravização foi questionada apenas aqui ou acolá e principalmente no caso da escravização de índios, que só era permitida legalmente no caso de guerra justa.

Por outro lado desenvolveu-se uma teologia para justificar a escravização. Recorria-se à Bíblia para fundamentar este costume. Três passagens bíblicas foram usadas especialmente na justificação da escravização. A passagem bíblica mais usada era a de Gn 3,17-19: Adão é condenado por Deus por causa de seu pecado a ganhar seu sustento e o de sua mulher com o penoso cultivo da terra. Os escravizados simbolizam na sociedade cristã a realidade desta condenação divina. Outra passagem bíblica utilizada para a justificação da escravização era a de Gn 4,8-16. Segundo esta interpretação, os escravizados eram descendentes de Caim que matara seu irmão Abel. Na Bíblia lê-se: "O Senhor pôs, então, um sinal em Caim para que ninguém, ao encontrá-lo, o matasse" (4,15). Este sinal era, na crença popular, a cor negra da pele dos africanos. A terceira fundamentação bíblica baseava-se em Gn 9,18-28. Segundo esta explicação, os negros eram descendentes de Cam. Cam viu a nudez de seu pai Noé que estava embriagado. Por isso ele foi amaldiçoado por Noé a ser escravizado de seus irmãos. Com estas explicações, a sociedade de então procurava na Bíblia justificativas para a situação de escravização dos africanos. Com esta fundamentação bíblica, a escravização era colocada como parte do plano de Deus, não tendo pois a sociedade portuguesa culpa nenhuma nesta situação. Ela apenas havia sido escolhida por Deus para aplicar a pena de escravização aos que a mereciam. O sistema de escravização recebia assim um significado religioso.

Tal teologização não se encontra evidentemente em nenhuma declaração oficial da Igreja. Mostra, porém como o sistema escravista havia penetrado profundamente na sociedade católica de então. Questionamentos sobre a legitimidade da escravização - como fizeram os dois jesuítas citados anteriormente - vão surgir novamente nos círculos eclesiásticos apenas quando das discussões em torno da abolição da escravatura. Especialmente após 1850 (com a proibição do tráfico de escravizados da África) são comuns na Igreja as vozes contra a escravização. No fundo a Igreja reflete nesta história a forma de pensar da sociedade branca e foi durante todo o tempo co-partícipe da situação. Dada a sua condição de submissão ao Estado, nem é de se esperar que tivesse tido uma outra posição.

A "lei do ventre livre" (1871) foi saudada positivamente por muitos bispos e muitos deles pediram na ocasião o fim do sistema escravista. Em cartas pastorais, a escravização foi denunciada como violação do direito natural e como sendo contrária ao Evangelho. "A escravidão estava sempre em contradição com o Evangelho que iguala perante o Pai Celeste todos os filhos dos homens", argumentava o bispo do Rio Grande do Sul dom Sebastião Laranjeiras em uma carta ao ministro da agricultura, comércio e construção após a promulgação da "lei do ventre livre". Mesmo após esta lei, a Igreja tinha ainda dificuldades de colocar-se como um todo contra a escravização, pois não queria ser vista como perturbadora da ordem pública. A possibilidade de possuir escravizados era garantida pela legislação do país e uma argumentação contra a escravização poderia ser interpretada como falta contra o direito natural à propriedade. Por um lado a Igreja queria manter boas relações com os proprietários de escravizados, por outro não podia mais ignorar o movimento abolicionista. Esta posição dúbia aparece muito claramente numa carta pastoral de Dom Luís da Conceição Saraiva em 21/11/1871. Ele recorre às palavras de Jesus em Lc 4,18-19 ("O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para anunciar aos aprisionados a libertação, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos, e para anunciar um ano de graça do Senhor") para saudar a "lei do ventre livre" e a defender teologicamente. Na mesma carta ele exorta os escravizados a obedecer e ser submissos aos seus senhores com as palavras de Paulo a Timóteo: "Todos os que vivem sob o jugo da escravidão considerem seus senhores dignos de toda honra para que não seja desonrado nome de Deus nem sua doutrina"(1Tm 6,1).

Os religiosos, que deviam sua relativa independência diante do estado ao trabalho escravo, não se portaram de forma diferente que os bispos ou clero secular na discussão em torno da abolição da escravatura. Os capuchinhos são de certa forma uma exceção na história da escravização no Brasil. Esta posição só é possível por terem eles vindo ao Brasil mais tarde, não estarem envolvidos com posses de fazendas e com isto dependendo deste sustento financeiro para a manutenção e, sobretudo, por estarem no país submissos diretamente à Propaganda Fide, isto é, à congregação romana para as missões.

Os religiosos não permaneceram, no entanto alheios à influência das ideias abolicionistas. Os beneditinos do mosteiro do Rio de Janeiro tiveram entre os religiosos um certo papel de vanguarda no movimento abolicionista. No ano de 1869 ele deram a liberdade a todos os escravizados com mais de 50 anos de idade. E pouco mais tarde declararam que eram livres todas as crianças nascidas de escravas do mosteiro. No ano de 1871 o mosteiro beneditino do Rio de Janeiro deu liberdade a todos os seus escravizados. No mesmo ano o exemplo foi seguido pelos carmelitas e pela Província Franciscana da Imaculada Conceição. Um ano mais tarde também a Província Franciscana de Santo Antônio deu a liberdade a seus escravizados. Os religiosos não foram os únicos a tomar esta atitude. Também entre o clero secular houve libertação de escravizados.

O passo dos beneditinos do Rio de Janeiro foi sem dúvida um sinal importante para a abolição da escravatura, que mesmo assim ainda perdurou por 17 anos. Não se deve, porém, ter a impressão que a Igreja tenha exercido um papel de liderança no movimento pelo fim do regime de escravização no Brasil.

No avançar do movimento abolicionista houve também uma palavra clara em favor da abolição por parte do Papa Leão XIII em uma entrevista com o proeminente abolicionista Joaquim Nabuco, três meses antes da assinatura da lei que abolia a escravização em 1888. Antes disso o Papa havia pedido em uma carta de 14/01/1888 dirigida à princesa Isabel, que conduzia os negócios governamentais no Brasil, a libertação de escravizados como uma espécie presente pela passagem do jubileu de ouro de sua ordenação sacerdotal. Uma clara condenação da escravização por parte do Papa Leão XIII veio aos bispos brasileiros através da Encíclica In plurimis de 5 de maio de 1888, que só chegou ao Brasil quando já havia sido promulgada a lei que acabava com o regime escravocrata.

 

2.5 Consequências religiosas da passagem África-Brasil e da escravização

O tráfico de africanos para o Brasil, a sua escravização e catolicização forçada tiveram consequências profundas para estes povos e seus descendentes no Brasil. Estas consequências podem ser analisadas de diferentes pontos de vista: sociológico, econômico, psicológico e assim por diante. A nós interessa aqui analisar as consequências do ponto de vista teológico e religioso de todo este processo.

O tráfico de africanos para o Brasil significou para estes povos em primeiro lugar uma grande ruptura com as tradições, também as religiosas. Isto não significa, porém, que estas religiões tenham sido esquecidas no Brasil. Elas não tiveram, no entanto uma simples continuidade. O desenvolvimento posterior destas religiões dentro de uma situação nova - e totalmente diversa - foi influenciado por muitos fatores e não por último pelo contato com o Cristianismo católico. Neste processo de desenvolvimento, do qual surgiram as religiões afro-brasileiras, houve tanto uma continuidade de tradições religiosas africanas, como também perda de elementos religiosos, adaptações religiosas e surgimento de novos elementos teológico-religiosos. O termo acomodação resume estes três processos. Na verdade estes três processos de acomodação de valores (perda, adaptação, criação de novos elementos) não acontecem um após o outro, mas são um único processo simultâneo. Uma adaptação leva a abandonar elementos, que são substituídos por outros. E assim surge um novo conjunto.

Queremos agora observar mais de perto estes três processos, não tanto no sentido de descrever detalhes destes elementos, mas apontar o contexto dentro do qual ocorreram perdas, adaptações e surgimento de novos elementos. Por motivo didático, dividiremos aqui estes três processos - ocorridos historicamente de forma simultânea. Também devemos ter em mente que estes processos ainda estão em curso nas religiões afro-brasileiras. Em algumas delas são processos ainda bastante dinâmicos, em outras já há uma maior estabilidade. Neste contexto também é interessante notar um movimento contrário: a chamada reafricanização, um movimento que tenta não apenas impedir novas modificações, mas também retirar certas modificações que foram introduzidas com o tempo e sob influências não-africanas e ressaltar elementos oriundos da África nestas religiões.

 

a) Perdas

Uma primeira perda houve no relacionamento entre religião e sociedade. As culturas africanas no Brasil não mais eram culturas de uma sociedade como um todo. Elas eram agora culturas exclusivas de uma determinada classe social, culturas de um grupo dentro da sociedade brasileira. Este grupo e sua cultura não tinham para a sociedade brasileira uma posição importante, pois se tratava de um grupo subordinado. De cultura da totalidade na África, eles passaram agora a cultura da parcialidade no Brasil. A mesma redução aconteceu também com as religiões africanas no Brasil. Se definirmos religião como instância produtora de sentido dentro da sociedade, fica-nos claro quão drástica foi esta redução. A lógica religiosa permanece uma totalidade, uma totalidade porém que agora só mais é válida, só mais é lógica e produtora de sentido para uma parte da sociedade.

Neste processo de deixar de ser religião duma totalidade da sociedade para ser religião de apenas um grupo dentro da sociedade, perdeu-se também um outro aspecto muito importante para quase todas as religiões originárias da África: a ligação com o grupo étnico (povo, tribo, clã familiar). Os africanos e seus descendentes encontram-se agora em uma sociedade não caracterizada por etnia. O critério de pertença ao grupo étnico não é mais determinante na organização desta nova sociedade onde eles se encontram. A organização étnica africana não é esquecida, mas não é mais o âmbito que serve de parâmetro para a organização social. O indivíduo e sua posição social têm aqui um papel mais importante que a pertença a um determinado grupo étnico. Em termos de religião, há aqui uma transferência de responsabilidade menos apoiada no grupo e mais acentuada para o indivíduo.

Em termos de conteúdo, também houve perdas para as religiões africanas em seu desenvolvimento no Brasil. O culto aos antepassados nunca alcançou no Brasil a mesma importância que tinha na África. O culto aos antepassados estava ancorado no sistema de clãs, sistema este que aqui é dissolvido pela escravização. Também contribuíram para o enfraquecimento do culto aos mortos fatores como a falta de pessoas iniciadas neste culto e a concorrência católica direta neste campo. Esta concorrência nota-se especialmente no que diz respeito aos ritos fúnebres. O exercício de cultos de influência africana foram por muito tempo proibidos no Brasil e até hoje são vistos ainda com um certo olhar de desconfiança. Justamente no que diz respeito aos ritos fúnebres, o controle católico tornava-se mais fácil. Um dos elementos centrais deste controle são justamente os cemitérios pertencentes às Igrejas. A influência católica neste campo é tão forte, que até hoje a participação na missa de 7º dia na Igreja católica ainda faz quase que parte do ritual fúnebre de algumas religiões afro-brasileiras.

O culto aos Orixás, parte muito importante e ponto de apoio das religiões afro-brasileiras, não perdeu nesta transferência da África para o Brasil a sua importância e centralidade, mas perderam-se partes do culto. Assim das diversas centenas de Orixás conhecidos e provavelmente cultuados na África, apenas alguns são conhecidos no Brasil e um número menor ainda cultuado.

No Brasil nunca pode ser restaurada a totalidade da estrutura da organização religiosa como ela se dava na África. Isto levou a uma simplificação da organização hierárquica e a uma aglutinação de funções. Funções religiosas exercidas na África por pessoas distintas, tiveram que ser assumidas no Brasil por uma só pessoa. Pessoas, por exemplo, especializadas e iniciadas na África no culto a um determinado Orixá, tiveram no Brasil que assumir o culto a diversos ou a todos os Orixás. O sistema africano de comunidades que se dedicavam ao culto de uma única entidade, desapareceu completamente no Brasil. Em seu lugar surgiram comunidades, por exemplo onde são cultuados diversos Orixás.

 

b) Adaptações religiosas e teológicas

As maiores adaptações ocorreram justamente onde partes de religiões transformam-se em religiões em si. Para as gerações trazidas da África, estas lacunas religiosas eram sentidas como dolorosas lacunas, pois elas haviam ainda conhecido a prática da religião como um todo na África. As gerações nascidas no Brasil não mais haviam experimentado esta totalidade africana. Para estas gerações, as partes restantes da religião formavam de alguma maneira uma totalidade. Estas gerações, para as quais a cultura africana era em parte desconhecida e estranha, iniciaram um processo de interpretação própria, desencadeando assim o processo de adaptações. Ritos africanos foram interpretados de forma diferente, mitos foram apresentados de outra maneira. A continuidade de tradições africanas desembocou muitas vezes numa independização destas tradições. E assim as religiões africanas no Brasil transformaram-se em religiões afro-brasileiras.

O sincretismo teve neste processo um papel importante. Houve um sincretismo em pelo menos cinco direções. O primeiro sincretismo aconteceu entre os cultos e compreensões religiosas africanas. Religiões africanas, que já na África tinham muitos aspectos em comum, aproximam-se umas das outras ainda mais no Brasil, chegando muitas vezes a fundir-se. Resquícios desta variedade de tradições africanas no Brasil são as chamadas nações. Até hoje todas as comunidades na Bahia sentem-se pertencentes a uma determinada nação. Esta pertença não tem necessariamente a ver com a origem desta tradição religiosa desta ou daquela determinada região na África. Mostra, porém a diversidade de tradições que chegaram no Brasil. O termo nação é hoje muito mais um elemento de coesão identitária para tradições religiosas, que indicação de diferenciação por origem.

Uma segunda direção na qual ocorreu um sincretismo é o entre estas tradições africanas e o cristianismo católico. Visto de forma superficial, estes elementos sincréticos com o catolicismo são talvez o fenômeno mais marcante das religiões afro-brasileiras. Os altares com uma multidão de estátuas de santos católicos simplesmente não se podem ignorar nos terreiros afro-brasileiros. Se estas estátuas têm - em termos de conteúdo religioso - uma importância tão grande quanto o espaço que elas ocupam, já é uma outra questão. A presença destas estátuas não é mais, no entanto apenas uma estratégia de sobrevivência, como no tempo da escravização, onde os escravizados dançavam perante as estátuas católicas para assim escapar da proibição de praticar suas religiões. Os santos católicos foram ligados com os Orixás. O culto aos santos da piedade popular reflete-se de forma muito forte no culto aos Orixás e vice-versa. A própria adaptação do calendário de festas aos Orixás ao calendário de festas dos santos católicos mostra esta forte ligação sincrética.

Uma terceira direção do sincretismo deu-se com a acolhida de elementos das religiões indígenas nas religiões afro-brasileiras. Os primeiros contatos entre índios e africanos foram feitos através de escravizados fugitivos que encontraram refúgio com os índios. A mestiçagem entre índios e negros concorreu para o sincretismo religioso tanto nas religiões afro-brasileiras, como religiões indígenas. As tradições religiosas do Norte do Brasil são hoje um exemplo típico da influência africana sobre as religiões indígenas.

Uma quarta composição sincrética digna de nota neste processo de adaptação das religiões afro-brasileiras é a influência do Espiritismo, fase esta um pouco mais tardia, mas não menos forte. Praticamente todas as religiões afro-brasileiras têm hoje uma influência espírita, ora mais explícita, ora mais velada.

Uma quinta e última direção do sincretismo a ser aqui apontado é o da acolhida nas religiões afro-brasileiras dos novos grupos religiosos e suas ideias, entrados no país da segunda metade do século XX em diante. Aqui se pode citar influência de religiões orientais, de grupos esotéricos ou da chamada Nova Era. Também de forma diferenciada, estes grupos passam a exercer influência sobre segmentos das religiões afro-brasileiras, fazendo surgir, por exemplo, a chamada umbanda esotérica.

O processo de adaptação das religiões afro-brasileiras não ocorreu apenas em termos de sincretismo. Houve também um processo de seleção de elementos religiosos (de Orixás, por exemplo) de modo que alguns foram esquecidos e outros receberam uma outra importância. A tendência dos Orixás relacionados com a agricultura foi a de terem sempre menos importância, enquanto outros Orixás, ou aspectos de alguns Orixás, ganharam mais importância. Assim, por exemplo, o Orixá Ogum, que está relacionado com a guerra, foi ganhando com o tempo uma maior importância no Brasil. Também Xangô, o Orixá da justiça, e Exu, relacionado às vezes com a vingança, tomaram mais importância. Embora estes Orixás originariamente apresentavam muitos outros aspectos, foram estes os mais destacados no Brasil. A situação social dos negros encontrou de alguma forma sua compensação na expressão religiosa.

Os novos arranjos feitos no sentido de simplificar e concentrar a hierarquia levaram a mudanças nas formas rituais. Mesmo com todas estas dificuldades em transmitir a religião, é de se destacar uma fidelidade muito grande para com a origem africana, fidelidade esta que não pode ser estendida a todos os aspectos da religião.

 

c) Criação de novos elementos religiosos

Através da independização das tradições africanas no Brasil surgiram novas interpretações e práticas religiosas, originadas às vezes inclusive pela pouca ou má formação religiosa das lideranças. Dentro deste mundo que chamamos de religiões afro-brasileiras podem ser encontradas muitas correntes; desde comunidades que mantêm uma grande fidelidade às tradições africanas, até grupos religiosos onde os elementos africanos não são mais os preponderantes. Pelo fato de as diversas tradições religiosas afro-brasileiras serem totalmente autônomas, não há nenhuma instância de controle, de modo que cismas dentro de uma tradição fazem surgir não apenas novos grupos, mas também novas interpretações. Assim a criação de novos elementos pode tanto ser resultado do processo de adaptação como também fruto da fantasia religiosa de determinadas lideranças.

Outros novos elementos surgiram para preencher lacunas originadas no processo de transposição destas religiões da África para o Brasil. Através da perda da organização por grupos étnicos em clãs, estirpes, famílias etc., perdeu-se um elemento organizacional importante destas religiões. A pertença a um grupo religioso não podia mais ser definida pela pertença a uma determinada família ou descendência. A reorganização religiosa no Brasil não podia, pois mais apoiar-se nas ligações de parentescos carnais. Em substituição a esta lacuna surgiu uma organização baseada em um parentesco espiritual.

A nomenclatura para diversas funções ou cargos dentro de diversas comunidades religiosas afro-brasileiras aponta para esta nova forma de parentesco: pai-de-santo, mãe-de-santo, filha-de-santo, irmão-de-santo, família-de-santo, etc. Este parentesco religioso substituiu o parentesco familiar dilacerado pelo processo da escravização e serviu de padrão para o sentimento de pertença a um determinado grupo religioso. Onde a recomposição da antiga organização não mais foi possível, a comunidade de fiéis encontrou formas substitutivas, que têm alguma semelhança com a antiga forma, mas são diferentes e novas.

Estes grupos (re)compõem em uma forma reduzida a organização de vida originária da África. Eles são quase que miniaturas da totalidade da pátria perdida. Em círculos pequenos e fechados foi recomposta a pátria. A África e suas diferentes nações tornou-se exemplo inspiracional para estas comunidades, que passaram a ver na África e suas nações não apenas os lugares de origem ou um conceito geográfico. A África e suas nações passou a ganhar um significado religioso e mítico.

O mesmo fenômeno ocorreu com a língua. As línguas africanas trazidas ao Brasil com os escravizados praticamente desapareceram em sua função de instrumento de comunicação cotidiana. No âmbito do culto tentou-se, porém - com maior ou menor sucesso - manter estas línguas. Em alguns terreiros podem ser observados apenas fragmentos destas línguas, em outros, rituais inteiros são feitos em língua africana. Independentemente da pergunta se as línguas africanas conseguiram ou não ser mantidas no Brasil, não há de se negar que o que se manteve na língua é quase que exclusivamente aquilo que tem significado no âmbito religioso, de modo que se pode falar na existência de uma língua praticamente exclusiva para o culto.

O processo de sincretismo entre religiões africanas e o catolicismo, citado de passagem anteriormente não é, entretanto uma rua de mão-única. O cristianismo católico no Brasil também recebeu influência de elementos advindos de religiões africanas. Claro que estas influências são mais sutis que na direção inversa e ocorreram mais a nível pessoal que institucional. Elas tinham início já na educação dos filhos dos senhores de escravizados. A mãe-preta certamente não contava histórias de ninar para os filhos do senhor sobre os anjos da guarda. É mais provável que contava histórias do marinheiro Calunga que casara com a rainha do mar. Os filhos dos senhores brancos cresciam em contato com os negros e foram inclusive por estes em parte educados. A mistura de negros e brancos na sociedade e também matrimônios mistos levaram tanto a uma desafricanização dos negros e da população mestiça, como a uma africanização da sociedade e cultura brasileiras. Estes dois processos ocorreram paralela e simultaneamente.

Do lado do catolicismo, esta influência de elementos africanos faz-se sentir, sobretudo no catolicismo chamado popular, onde os limites entre devoção aos santos e culto aos Orixás às vezes não são tão nítidos. Em muitos casos, a Umbanda tornou-se nas grandes cidades uma certa continuidade da devoção do catolicismo santoral praticado no interior (e, mais adiante, algumas manifestações pentecostais vão se tornar continuidade de rituais e elementos devocionais afro-brasileiros). Assim surge um grupo da população que se serve tanto do catolicismo como dos cultos afro-brasileiros para satisfazer suas necessidades religiosas e é servida tanto por um como pelo outro lado. Continuidade e alternativa se dão de forma entrecruzada.

Não é claro até que ponto as pessoas têm consciência deste cruzamento. Este cruzamento não é, porém algo percebido de forma teórica; ele se dá na prática com as necessidades das pessoas. Assim, por exemplo, tanto faz se a dor de cabeça foi embora pela bênção de um padre ou pelo conselho de um pai-de-santo. O importante é que ela tenha desaparecido.

 

d) O sincretismo

O processo de sincretismo, por ser uma temática mais ampla, será abordado mais à frente.

 

e) A reafricanização

Um processo que está ocorrendo nas últimas décadas nas religiões afro-brasileiras e que levanta muita discussão pode ainda ser visto como consequência religiosa e teológica da escravização e catolicização forçada dos negros:  a chamada reafricanização. A ideia, que conta sobretudo com o apoio das classes mais intelectualizadas dentro das religiões afro-brasileiras, é a de reafricanizar estas religiões, isto é, purificá-las de todos os elementos estranhos (especialmente os católicos) que foram com o tempo a elas se juntando. Trata-se duma tentativa de reverter o máximo possível o comente é chamado de sincretismo (também chamado de dessincretização).

 Sobretudo a identificação entre Orixás e santos católicos é colocada em questão. Este processo não é em primeiro lugar uma rejeição do contato com o catolicismo. É antes de tudo um esforço de autoafirmação destas religiões no contexto religioso do Brasil.

O principal objetivo do movimento de reafricanização é incentivar uma volta às fontes. Mas justamente esta volta às fontes é algo muito discutível. A que fontes voltar? Há duas tendências dentro do movimento de reafricanização. Uma insiste em uma volta à África. Esta tendência entende que as verdadeiras raízes das religiões afro-brasileiras devem ser procuradas na África. Assim são enviadas pessoas à África para formação, aprendizagem da língua e iniciação religiosa. As partes da religião que foram perdidas devem ser resgatadas. É interesse introduzir no Brasil as partes da religião que foram perdidas em sua mudança da África para cá e recuperar para a religião elementos não-transmitidos. Esta tendência tem como ponto de partida a ideia de que as religiões afro-brasileiras são religiões africanas (no Brasil) e devem ser reorganizadas como tais.

A outra tendência no movimento de reafricanização insiste no aspecto afro-brasileiro destas religiões. Mãe Stela, da conceituada casa do Axé Opô Afonjá coloca sua posição de forma clara: "[O Candomblé] deixou de ser uma religião afro-brasileira para ser brasileira. Deixou de ser uma religião africana para ser afro-brasileira (...) A própria religião, a força, está mais aqui no Brasil mesmo". E argumenta:

Eu acho isso fanatismo, sair para buscar raízes. Não tem porque buscar raízes, pode ir até lá para ver se tem um lugar ainda que funcione as coisas, para aprender; que é bom aprender. Mas, as raízes estão conosco (...) nós somos galhos das raízes. Se as raízes morrem os galhos não resistem. Então nossas raízes estão aqui!

Esta tendência representada por Mãe Stela insiste nos elementos africanos que estão vivos no Brasil e é contra a introdução de novos elementos em nome de uma pretensa prevalência do ser africano, elementos estes que não têm nada a ver com as tradições africanas presentes no Brasil. Esta volta à pureza das tradições africanas deve levar em conta o desenvolvimento havido com o tempo tanto na África como no Brasil. Além disso não se pode simplesmente voltar à África, aos lugares de onde surgiram estas religiões para buscar suas raízes como se lá tudo tivesse parado no tempo e se o processo de colonização na África não tivesse modificado profundamente também aquelas culturas. A reafricanização não pode querer praticar uma espécie de reavivação de religiões que existiram uma vez, pois precisa levar em conta as transformações e mudanças que ocorrem em culturas vivas. Esta tendência do movimento de reafricanização não é pois a favor de um conservacionismo religioso, mas sim de uma tentativa de restabelecer uma identidade africana a estes grupos.

A reafricanização não se limita apenas a uma dimensão religiosa, mas entra de forma consciente no nível sócio-político e defende uma descolonização, isto é, tanto uma avaliação crítica da colonização e suas influências nas culturas africanas no Brasil como uma conscientização da população descendente de africanos.

Outros porém, não veem motivos para a abolição dos elementos sincréticos. Estes elementos não são mais elementos estranhos e tornaram-se parte integrante da tradição afro-brasileira. Luís da Muriçoca, um pai-de-santo, rejeita decididamente a ideia da reafricanização: "Eu sei que o Senhor do Bonfim não é Oxalá, mas ninguém vai tirar sua imagem do meu peji". Afirma que continuará a tradição de nas sextas-feiras ir à missa na Igreja do Bonfim e nas terças-feiras, dia de Ogum, ir rezar na Igreja de Santo Antônio da Barra. E argumenta da seguinte forma: "Faço isso desde menino, era o que nossos avós nos ensinavam".

Nesta argumentação fica claro que as duas correntes religiosas (cristã e africana) não são simplesmente misturadas ou confundidas, mas que as duas são tradição comum para uma parcela da população, que não mais as podem separar. As duas correntes formam uma única tradição. Neste contexto se pode dizer que reafricanização significa tanto busca de autenticidade e autonomia das religiões afro-brasileiras, como também perda ou separação de tradições.

Este movimento de volta à África e de reafricanização - seja ele entendido como for - é um claro sinal dum processo de conscientização que está ocorrendo dentro das religiões afro-brasileiras. Assim há uma reflexão religiosa sobre a história da escravização e sobre a catolicização forçada dos negros para cá trazidos. A história não mais pode ser entregue aos outros ou ao acaso. As próprias lideranças das religiões afro-brasileiras reconhecem isso e estão reagindo no sentido de direcionar a própria história.

 

Referências bibliográficas

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BERGMANN, Michael, Nasce um Povo. Petrópolis: Vozes 1978.

CHIAVENATO, Júlio José. O Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense 1986.

KHAPOYA, Vincent B. A Experiência Africana. Petrópolis: Vozes 2015.

REHBEIN, Franziska.  Candomblé e Salvação. São Paulo: Loyola 1985.

VISENTINI, Paulo Fagundes; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira; PEREIRA, Analucia Danielevicz. História da África e dos Africanos. Petrópolis: Vozes 2014.

 

 

Última atualização em Dom, 07 de Abril de 2019 23:01