Sapienciais |
![]() |
![]() |
![]() |
O Neosapiencialismo Em algumas partes da Índia antiga, lá pelo século décimo antes da contagem comum, havia uma sub-casta dos brâmanes composta por um grupo de seniores sábios. Como eram os mais versados nos Vedas, a eles a comunidade recorria para obter as respostas às mais diversas questões e dúvidas. Sabiam responder sobre as colheitas, as doenças, os nascimentos, as chuvas, os casamentos, a educação, a organização, a ordem, os deuses e inclusive sobre o grande enigma da morte. Para os padrões da época, poder-se-ia dizer que sabiam tudo. Estamos falando do sapiencialismo hindu. Tenho a impressão que estamos assistindo a um renascer de uma sub-casta que tudo sabe. Tudo mesmo! Qualquer questão! Trata-se de uma sub-casta dentro do mundo jornalístico, composta especialmente por âncoras, apresentadores, colunistas, comentaristas. E isto tanto no jornalismo impresso, como de internet, de rádio ou de televisão. É o neosapiencialismo jornalístico. Fico sempre novamente surpreso e maravilhado e impressionado com toda a sabedoria desta sub-casta. Apresenta-se uma notícia sobre um problema de trânsito. Terminada a matéria, em questão de segundos os neosapienciais têm já pronta a solução. Em primeira mão, quem está ouvindo, vendo, lendo fica sabendo o quão simples e rápido e eficientemente o problema poderia ser resolvido. É assim: em princípio, tudo o que está ali organizado está errado. Ponto! E em assim sendo, tudo o que é proposto pelo neosapiencial é certo e viável, funcionaria e resolveria. Simples e direto assim! Não importa se o problema é de transporte público ou privado; se de automóveis, metrôs, caminhões, trens, aviões ou navios; se de rodovias, ferrovias, hidrovias ou aeroportos. A solução é simples e direta para tudo. E quem está ouvindo ou lendo fica com a pergunta: por que toda esta genialidade de solução não é aplicada? Outro campo de atuação predileta dos neosapienciais é o da saúde pública. Invariavelmente mostra-se um atendimento que não foi feito, um sofrimento enorme por parte de algum paciente (preferencialmente uma mãe com criança doente). O caso existe, é claro. E a partir disto, o roteiro é igual ao do transporte: tudo o que existe em termos de saúde pública está errado! Sem sombra de dúvida! Isto é praticamente auto-evidente. É interessante perceber nestes casos que os milhares de agentes de saúde (médicos, enfermeiros), as milhares de estruturas de saúde (hospitais, postos de saúde, unidades de pronto atendimento, pronto-socorros), as centenas de programas públicos de saúde estão sempre, invariavelmente, sem exceção, no lugar errado! Eles nunca estão onde está o neosapiencial. Que eles possam estar atendendo milhares de outras pessoas neste mesmo momento, isto não conta, pois não estão no lugar em que está o neosapiencial. E onde este está, ali é o centro do mundo! Outro exemplo onde o neosapiencialismo apresenta sua contribuição fantástica é a área tributária. “Nossa carga tributária é uma das mais altas do mundo”: esta sentença liquida qualquer pretensão de discordância. E, além disso, coloca o leitor ou o ouvinte ou o telespectador no seu devido lugar: o da ignorância. É assim que me sinto frente à sentença, pois não tenho a mínima ideia de como é a carga tributária no Paquistão, na Indonésia, na Nigéria, na Índia, nem mesmo na China, na Libéria, em Uganda, na Armênia ou no Panamá. Nem sei sequer como funcionam os impostos na Bulgária. Mas os neosapienciais sabem, pois senão não afirmariam ser a nossa carga tributária uma das mais altas do mundo. Pode-se falar praticamente numa onisciência tributária desta sub-casta emergente. E para demonstrar esta onisciência, os neosapienciais apresentam logo qual é a solução: uma reforma tributária. É isto: tão simples, claro, direto! Por que milhares de câmaras de vereadores pelo país, as dezenas de assembleias legislativas estaduais, o congresso nacional (câmara e senado), a presidência da república, o tribunal de contas da união, a receita federal e outros órgãos não tiveram esta ideia simples e genial? Uma reforma tributária e tudo está resolvido! E como os neosapienciais sabem tudo isto? Muito simples também: aprenderam “lá fora”. Sim, “lá fora” é invocado em muitas situações. Comum é invocar esta fonte de sabedoria, por exemplo, na área criminal: Queria ver se fosse “lá fora”! Sim, “lá fora” as coisas funcionam. “Lá fora” é uma espécie de lugar mítico, uma terra sem males, onde todos os problemas já encontraram soluções. E se “lá fora” todos os problemas já foram resolvidos, o que fazem as pessoas que vivem “lá fora”? Dão cursos aos neosapienciais! Ah, a propósito, a sub-casta dos seniores sábios na Índia antiga, que eu saiba, nunca existiu. Foi invenção minha.
V. J. Berkenbrock
|